quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Memorial do Paraíso, de Sílvio Castro - 11



FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.

ATO 8º

(A cena é a mesma praia. No areal branco está um estrado onde se eleva um altar. Junto ao altar estão os muitos portugueses, o Capitão-mor e os capitães, e mais todos os outros que assistem à missa entoada por sacerdotes e religiosos. No fundo da cena, no alto das árvores e pelo chão, estão muitos naturais da terra, homens e mulheres.

De um ângulo da cena caminha o Mensageiro que acompanha o Príncipe.)

Príncipe,

ali estão os nossos diante do altar para assistir á missa. É a primeira vez que estas terras e estas gentes participam do Santo Sacrifício. O Nosso Senhor se mostra à sua gente nova - já agora Vossos súditos, meu Rei - e para eles surge a mesma esperança de salvação de que nós há muito gozamos, pela infinita bondade da Graça Divina.

Aqui estamos, Príncipe, nesta Vossa nova terra. É um mundo novo esta terra, feito de belezas e maravilhas. Caminhemos até lá, junto do altar e escutemos a pregação do piedoso frei Henrique de Coimbra. Escutai, Príncipe: a sua voz segura mistura-se com o verde das árvores, com o trilhar das aves, com a luz que alarga as dimensões infinitas desse paraíso real e nosso.

"Aqui estamos para difundir a Luz divina. Nestas benditas terras, diante desta gente dócil e gentil, animados pelo amor de Cristo, Nosso Senhor, aportamos para propagar a nossa Santa Fé. Esta Cruz que nos acompanha e que nomeia a terra que nasce sob o seu signo, esta Cruz será a guia de todos nós para a gloriosa missão de salvar esta gente, nossos irmãos. Eles são bons, ingênuos e gentis; eles já conhecem pela prÓpria natureza a verdade do Senhor; eles sÃo os mais novos filhos do Senhor, nosso Redentor. Aqui chegamos e aqui estamos para transfundir nesta boa gente a Luz que nos ilumina e salva. A esplendente luz que dÁ tanto realce Às maravilhas do paraÍso - que é esta nossa Terra da Santa Cruz - se confundir com a Luz da nossa Fé e todos serão iluminados. Para isso vimos. Para isso aqui ficaremos numa doce comunhão".


Príncipe,

agora frei Henrique concluiu a pregação e recomeça o Santo Ofício. Ele se movimenta no altar entoando as palavras sagradas e os outros religiosos o acompanham.

Olhai, olhai, Príncipe, la no alto das árvores e nos areais como aqueles homens acompanham os nossos gestos! Eles se ajoelham quando nós nos ajoelhamos; inclinam as cabeças quando nós as inclinamos na adoração do corpo de Deus, Nosso Senhor.

Sancho de Tovar se adianta e se aproxima de uma mulher que está sentada, nua, no areal, e lhe dá um pano para que se cubra. Ela aceita o dom de Sancho de Tovar. Recolhe-o, toma-o às mãos e continua assistindo atentamente à missa. A bela mulher cobre seus ombros com o pano e toda a sua nudez esplende como antes.

Dentre aqueles homens - Príncipe, olhai - um, mais maduro, gesticula e fala em voz baixa com os seus, levantando os braços para o céu, como que ungido do mesmo fervor que nos anima.

A missa termina. Pedro Álvares Cabral organiza um cortejo que parte para um alto da praia. Todos os capitães, pilotos, marinheiros, soldados, religiosos, todos os homens da frota acompanham o Almirante. O séquito parte, solene, conduzindo a grande cruz. Os tambores ressoam, compassados. Atrás do cortejo caminha a multidão de homens e mulheres da terra, fascinados pelo esplendor da cerimônia. Chegados ao alto, Pedro Álvares pára o séquito e chama o homem maduro que tão piedosamente falava com os seus durante a missa. Com ele e dois marinheiros que conduzem a cruz sobe no ponto mais alto da costa.

"Aqui planto esta Cruz, símbolo de nossa Fé‚ e da soberania d'El-Rei, nosso Senhor. Com este lenho que aqui fica todos agora sabem que esta é a Terra de Santa Cruz".

28 de abril

Diferentemente dos dias anteriores, este foi mais de trabalho que de festas, minha querida filha. Logo depois de termos comido fomos à terra para dar guarda e ajudar aqueles outros que recolhiam o pau de brasa, assim como para lavarmos nossas roupas. Quando chegamos, encontramos na praia mais de setenta dos homens da terra, todos em grande tranqüilidade e desarmados de seus arcos e flechas. Acudiram imediatamente para junto de nós, demonstrando grande satisfação em nos rever e ajudando-nos em tudo, como sempre faziam. Tinham tanto gosto em ajudar que até lutavam para fazê-lo. Enquanto se cortava a lenha, dois dos nossos carpinteiros preparavam uma cruz com um pau especial já cortado para esse fim. Muitos deles vinha ali para estar junto dos carpinteiros. E acredito, minha querida Maria, que assim o faziam mais para ver a ferramenta de ferro com que os carpinteiros trabalhavam do que pela cruz, porque eles não têm coisas de ferro e cortam suas madeiras e paus com pedras feitas de cunhas metidas num pau entre duas talas, muito bem atadas, boas para todos os trabalhos deles, como já me contaram os homens que estiveram nos povoados deles. Enquanto nos ajudavam, eles falavam tanto e sem parar que quase nos estorvavam.

Mais uma vez mandou o Comandante aos degredados e a Diogo Dias que fossem novamente até a aldeia deles e que lá dormissem, mesmo se os naturais da terra não os desejassem ali. Os três partiram mais confiantes do que na primeira vez, principalmente o pobre Afonso Ribeiro. Diogo Dias demonstrava grande satisfação por ser mandado a tal missão.

Sabes, minha querida filha, uma das maravilhas maiores dessa terra que me encanta sempre e mais são os pássaros que nela vivem. Enquanto cortávamos lenha vi muitos papagaios, dos grandes e dos pequenos, dos verdes, dos vermelhos e dos pardos. Vi igualmente pombas rolas, alegres e tímidas como a gente daqui. Acredito que por essas matas vivem milhares e milhares de pássaros. Enquanto acompanho o trabalho dos nossos me embalo com os cantos sonoros que chegam aos meus ouvidos, vindos de um bosque encantado que eu vejo.

29 de abril

Já agora sabemos, minha querida filha, que esta quarta-feira é um dos últimos dias que passamos por aqui. Por decisão de Pedro Álvares Cabral partiremos no dia 2 de maio, que já se aproxima. De certa maneira, depois de haver conhecido o termo de nossa estadia aqui, me sinto num estado de ansiedade triste. A partida me parece uma perda. Junto a esse sentimento de privação de alguma coisa que já me pertence, hoje tenho um triste pressentimento sobre o meu futuro. Me sinto como sem apoio diante das coisas. Como se eu flutuasse numa espaço vazio e não encontrasse uma saída para os meus passos. Não te deves assustar, minha querida Maria, é assim que me sinto, mas não me sinto infeliz. É como se a partida fosse uma chegada. Mas uma chegada para onde?

O dia foi consumido em transferir o material do navio de mantimentos para as outras naus e enchê-lo de riquezas da terra, tantas quanto fosse possível.

Das naus observávamos as praias e lá estavam muitos deles. Eram trezentos, mais de trezentos. Uma multidão empolgante, variada, múltipla, como em verdade, minha querida Maria, é essa gente nova que muitas vezes eu julgo já conhecer, mas que agora, fixando-a daqui da minha nau, me foge como uma visão de sonho.

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