Manuela Degerine
Capítulo XVI
Etapa 6: De Minde a Fátima
Saio de Minde por volta das dez horas. Previ uma etapa curta, menos de dezanove quilómetros através do campo, espero percorrê-los no júbilo e sossego dos dias precedentes. Ilusão... Encontro-me demasiado perto de Fátima, há peregrinos extraviados por todos os caminhos – mesmo aqueles que eu trilho.
Logo à saída de Minde sou apanhada por três habitantes de Salvaterra de Magos acompanhados por uma sobrinha (e prima da filha) vinda do Luxemburgo para a peregrinação. O que me incomoda: são barulhentos. Telefonam. Falam todos ao mesmo tempo. As da frente (as duas raparigas) gritam para os de trás. Queixam-se. Os pais com quarenta e tal anos. A filha com vinte e dois. A sobrinha com trinta e dois. Do género que acumula os 2F (Fátima, futebol) com os 4C (carro, comida e centro comercial). Para não carregarem com mochilas, o pai da sobrinha leva pela estrada – de carro – o almoço e as bagagens; e segue em permanente contacto telefónico com os santos peregrinos.
Estes começam num ritmo enérgico, como se Fátima fosse além, ao virar do caminho; dali a pouco gemem com bolhas apesar de, nos bombeiros, lhes terem preparado os pés, isto é: envolveram-lhos integralmente em algodão e adesivo anti-bolhas. A mãe fez quatro vezes a peregrinação, a primeira pela operação dela à coluna vertebral, a segunda pela operação do marido ao coração, a terceira pela operação da filha ao coração e a quarta – não quer dizer porquê. Os pais e a filha são gordos, a sobrinha é magra. Esta é a única que admira a paisagem; e não se queixa. No país onde cresceu o circuito pedestre não representa uma penitência mas o equivalente, para estes habitantes de Salvaterra de Magos, do centro comercial: um percurso de lazer.
A mãe, durante toda a manhã, protesta. Perguntámos o caminho, enganaram-nos, passei sempre por Minde, seguia pela estrada, por aqui é mais longe, isto é caminho de cabras, não tem jeito, não tem jeito nenhum, se eu soubesse, não me volta acontecer. Repetição durante quatro horas. Nos intervalos, para variar, fala das doenças, dela, do marido, do filho, da filha. Mais uma lamentação pelos quilómetros acrescentados, mais uma volta pelas mazelas familiares. (O prazer sempre renovado de se espojar nas dores reais ou imaginárias é, como sabemos, uma particularidade lusitana.)
A maioria dos que me rodeiam arruma Fátima nas paixões populares com o futebol, as telenovelas e a música pimba. Os cegos e os paralíticos. As velas com a altura do penitente. As voltas de joelhos à Capela das Aparições. Agora ocorre-me que felizmente ainda há Fátima para fazer caminhar estes portugueses: nada mais, para além do centro comercial, os descola do carro. E talvez Fátima os espiritualize...
Não é certo. As peregrinações fazem parte de um comércio com a Virgem, tu obténs-me isto, eu faço aquilo, negócio muito regateado. A Dona de Salvaterra de Magos não tinha prometido à Virgem os quilómetros suplementares nem os pedregulhos do caminho: sente-se, de certa maneira, ludibriada. Deve quinze, dá vinte – vai daqui a bocado, quando entrar na basílica, reclamar o troco.
Subimos uma encosta, passamos junto de aerogeradores, uma paisagem verde e pedregosa, muros com pedras colossais, sobreiros, oliveiras, carvalhos, pinheiros, eucaliptos, castanheiros. Tojo, urze, torga, murta, alecrim, rosmaninho... Cogumelos. Muitas plantas cujos nomes desconheço. Uma vegetação variada e aromática.
Os meus inseparáveis companheiros vêem-me com estranheza parar para observar as plantas ou a paisagem. Numa das vezes, estou a fotografar um carvalho coberto de bugalhos com cores variadas, informa a mãe, para ilustração da família: São abrunhos. Pois... As telenovelas ensinam pouco.
Despeço-me dos acompanhantes à entrada em Fátima e procuro o refúgio de S. Bento de Labre.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
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