quarta-feira, 16 de junho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo XXI

Etapa 9: Na saída de Ansião

Apesar de bem instalada na camarata feminina dos bombeiros voluntários de Ansião, durmo pouco: acordo à uma hora, volto a adormecer às cinco, levanto-me às sete e meia. Sinto-me cansada. E dói-me o joelho esquerdo. Não só... Descubro uma bolha no calcanhar esquerdo. Mau... Então até as botas fiéis me aleijam?!... Serei capaz de caminhar mais trinta quilómetros? Pergunta retórica, eu sei. Uma vez começada a etapa, não será fácil interrompê-la, mesmo querendo, por não haver meios de transporte. Seguirei portanto até ao fim.

Tomo uma refeição que, pela quantidade de comida ingerida, não posso designar como pequeno almoço: duas enormes sanduíches com queijo do Rabaçal em fatias grossas, o melhor do mundo, garante a dona do café, dois copos de leite e um bolo quente. Depois, enquanto me dirijo para a saída de Ansião, ainda como duas tangerinas e um pedaço de chocolate preto com avelãs.


Parto sem visitar Ansião, com muita vontade de regressar; porém hoje busco experiências que não se cruzam com a viagem turística. Passo por uma ponte antiga, admiro a horta-jardim de uma casa.

Há um nevoeiro muito denso. A visibilidade é curta, vou distraída a manducar e a verificar o caminho, para não me perder, com o nariz no roteiro e os olhos nas placas das ruas, alternadamente, claro, presto pouca atenção ao resto, sinto de repente um toque na anca direita. Viro-me: um bull dog!

Agressivo.

Claro que trago comigo o bordão. Mas neste transe prefiro até escondê-lo. E faço das tripas coração.

- Olá, o que andas tu aqui a fazer?... Tão cedo? Sozinho? Fugiste? Não está bem... Devias voltar para casa... Os teus donos vão-se zangar...

Canto eu num tom mavioso.

Não paro. O monstro começa a correr à minha volta. De súbito, prende-me as calças com os dentes. Consigo soltá-las, devagarinho, sem contudo parar, como posso, atenta aos dedos, uma dentada, lá fico eu maneta. E sempre a chilrear:

- Não te zangues, com licença, se não te importas... Recupero as calças e vou andando, tenho trinta quilómetros para palmilhar, a pé, claro, palmilhar é sempre a pé, senão dizia conduzir, convém sermos rigorosos, tu ladras ou rosnas, tens uma linguagem pouco variada, percebo-te aliás muito bem, não te preocupes, mas fica aí, não é preciso vires até Condeixa, aliás nem vale a pena tentares, não és capaz, tens muitos músculos e pouco treino...

O animal continua a rosnar. Descreve outro círculo à minha volta. Eu continuo a andar. E a entoar a ladainha. Paz na Terra aos cães de boa vontade. Amemos os bull dogs como a nós mesmos mas não cobicemos as feras do próximo. A certa altura, que não terá passado de um minuto depois, embora me parecesse interminável, compreendo que ele abandona o serviço, já me afastei o suficiente da casa e não é alimentado para guardar a dos vizinhos.

Apoio-me no bordão para não cair. (Outra utilidade deste objecto que, de início, me parecia supérfluo.) Sempre a andar. E, não obstante os tremores, acelero daqui para fora.

Pela primeira vez desde o início desta viagem a Santiago de Compostela, interrogo-me se não abandono o projecto já aqui neste momento: antes de ser devorada por alguma besta sanguinária. Tantos cães ladram, algum há-de morder. Porém abandonar é passar em sentido inverso pelo bull dog.

Avante.

Dali a um bocado, mais refeita do susto, telefono a um andarilho que já percorreu milhares de quilómetros a pé. Confio-lhe a minha angústia. O quê? Nos caminhos portugueses há cães? Isso é aborrecido... Tive o mesmo problema na Roménia. Sabes qual a melhor táctica? As rodelas de chouriço.

(Amanhã, outro amigo, este português, o Vítor Borges, aconselhar-me-á igual remédio.)

Pois! Bastava pensar nisso... É o ovo, não: o chouriço de Colombo.

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