Manuela Degerine
Capítulo XXIV
No Caminho de Santiago
O leitor terá sem dúvida inquirido por que carga de água teimo em pernoitar nos bombeiros voluntários. Bem... Chegou o momento de reflectirmos sobre o assunto. Para além de os quartéis de bombeiros voluntários serem os lugares mais aprazíveis deste país, pela energia e humanidade que lá encontramos, eu quero fazer esta viagem, o mais possível, na pele do peregrino de base. Isto é: do peregrino que vem da França ou da Alemanha ou da Inglaterra para fazer a pé o Caminho entre Lisboa e Santiago de Compostela. (Por que razões, pouco importa, são subtilezas sobre as quais o próprio peregrino, mesmo com boa vontade, não saberá sempre responder; em cada caminhante há um caminho interior distinto de todos os outros.) Por enquanto poucos portugueses se interessam por esta aventura, haverá porém cada vez mais, não por a fé crescer, mas porque no futuro caminharemos mais: a caminhada equilibra a nossa vida citadina. Os portugueses, que o regime manteve até 1974 separados do mundo, situam-se ainda na fase que os outros europeus viveram entre a segunda guerra mundial e os anos setenta: a adoração, não do vitelo de ouro, mas do automóvel. Isto mudará aqui como tem mudado nos outros países. Lenta mas seguramente. Haverá, mesmo em Portugal, por incrível que pareça, mais passeios, mais zonas pedonais e mais percursos pedestres. A vida que os citadinos aguentam na região de Lisboa não é tolerável – cumpre mudá-la.
Por conseguinte é urgente todos os lugares situados neste percurso de Santiago perceberem o que isto representa do ponto de vista económico – não só, claro, mas também. Pode parecer à primeira vista que um peregrino não gasta nada: caminha e pede albergue, não é? No entanto, quando eu preparava esta aventura, li vários blogs sobre o assunto e dei-me conta de que, em média, cada peregrino prevê um orçamento à volta dos trinta e cinco euros por dia, que há-de ser gasto em refeições, farmácia e imprevistos. Mil euros por mês. Consoante as circunstâncias, os dias e os lugares, gastará mais ou menos, dentro deste orçamento. Vai à mercearia, vai ao café, vai ao restaurante, vai à farmácia, vai ao médico, vai aos bancos... Multiplicado por muitos milhares, como nos percursos francês e espanhol, que perceberam há decénios as vantagens desta situação, torna-se um importante factor de desenvolvimento para aquelas regiões. E, depois de ter passado a pé, o caminhante volta de carro com a família ou os amigos, para visitar o que não teve o tempo ou a força de ver a pé, recomenda os cafés e restaurantes a outros compatriotas, que farão ou não a viagem a pé... A Espanha compreendeu isto há mais de 20 anos e investiu em refúgios onde um certo número de peregrinos pode pernoitar gratuitamente. Resultado: tem agora tantos milhares de caminhantes, uns modestos, os outros menos, estes dinamizam o turismo rural, são acompanhados por carrinhas, que lhes transportam as bagagens, frequentam os restaurantes gastronómicos, criam empregos em zonas que, sem esta actividade, não os teriam. Eu, em Portugal, de Lisboa a Condeixa, passei por uma única terra que compreendeu o interesse desta posição estratégica e investiu de maneira inteligente no Caminho de Santiago: em sinalização, em placas, no aspecto atractivo da terra. Uma autarquia inteligente – parece haver tão poucas. Situa-se entre o Rabaçal e Condeixa; chama-se Fonte Coberta.
Claro que os bombeiros, em algumas terras, por caridade e humanidade, acolhem os peregrinos; mas os bombeiros têm mais que fazer. Já se lhes pede tanto do que, em tantas circunstâncias, devia ser garantido pelo Estado...
No Caminho português há cidades como Santarém ou Condeixa que ainda não perceberam nada disto. O caso de Santarém é distinto; porém Condeixa que, pela proximidade de Coimbra, não consegue beneficiar do turismo que Conímbriga atrai, podia aproveitar esta passagem dos caminhantes, que não seguem no mesmo dia para Coimbra: já caminharam trinta quilómetros, reservam os vinte que faltam para o dia seguinte. A existência de um refúgio com capacidade para acolher gratuitamente alguns peregrinos não custa uma fortuna e pode revelar-se, como em Espanha, um factor de crescimento; há muitas terras espanholas que vivem quase exclusivamente do Caminho de Santiago.
Em Portugal, com um percurso potencialmente tão atraente, pela beleza das paisagens, pelo simples facto de haver menos gente e menos confusão do que no Caminho Francês, é pena faltar a vontade de o valorizar – estabelecendo percursos acessíveis e bem sinalizados, criando também, como em Espanha, refúgios onde são alojados os primeiros peregrinos que cada tarde chegam; os outros vão para as pensões. Um investimento modesto.
Importa fazê-lo.
É fantástico como as pessoas se deitam ao caminho,o contacto com a natureza, o estar plenamente só,o imprevisto, o horizonte.
ResponderEliminarE é verdade que as pessoas começam a perceber que a vida é mais que trabalhar e perder tempo dentro do carro em filas intermináveis.