Manuela Degerine
Capítulo XXX
Instantes de vida
Folheio um diário do mês de Fevereiro de 2009 e o que leio parece-me mais distinto da minha realidade do que qualquer romance. Paris? Museus? Conversas? Escrita?
O meu marido telefona, alguns amigos também, muitos escrevem mensagens; estão todos do outro lado. Não desanimes. Tudo se há-de resolver. A tua mãe há-de melhorar. Pois há-de. Lá longe adivinho festas, livros, filmes, prendas, viagens. Na minha vida dominam outras paixões. Há ou não cocó? Se não há, preocupação; no hospital tiveram, duas vezes, que retirar as fezes à minha mãe. Se há, problema: os excrementos de um adulto não têm comparação com os de um recém-nascido. Cheiram muito mal. E, como a minha mãe não retém as fezes, cumpre mudar a fralda com frequência. Isto significa vir da casa de banho com um alguidar de água quente, virar para um lado, lavá-la, virar para o outro, lavá-la, pôr-lhe halibut para evitar as irritações, óleo para perfumar e proteger a pele, outra fralda... Levo meia hora. Depois ainda me resta lavar e desinfectar o alguidar, as toalhas e a sanita onde despejo as águas. Mais um quarto de hora. No mínimo. Corro de manhã à noite.
Sinto-me só. A minha mãe encontra-se demasiado doente para me fazer companhia. A relação que existia entre nós desapareceu: já não sou a filha, apenas uma pessoa necessária. A certa altura ela pensava que eu era a Natália. Qual Natália? Não conhecemos nenhuma. Só me lembrei, passados dias: a Natália era uma criada. E eu a que trabalha. Portanto: sou a Natália. Até o meu nome mudou.
Tento sobreviver. À noite, depois de mudar a última fralda à minha mãe, tomo um duche e vou para a cama – com um livro da Patricia Highsmith. Consigo, alguns dias, ler um conto antes de o livro me cair das mãos.
Uma manhã vou ao hospital dos Capuchos para renovar uma receita. A pé. Rua de Santa Bárbara, Largo do Paço da Rainha. Sabe bem caminhar, por pouco que seja. Após várias semanas de chuva e escuridão, a igreja do Paço da Rainha recorta-se no azul do céu. Instante de júbilo.
E, no dia 26 de Dezembro, o meu irmão toma conta da minha mãe; eu vou a Tomar. Passo, de comboio, junto ao percurso ribeirinho entre Alhandra e Vila Franca, com – uma vez mais – um sentimento de estranheza: a que caminhou ali com calor e uma mochila era alguém cuja vida me parece agora, pobre Natália, tão fascinante como, para outros, a das vedetas de Hollywood.
Chego a Tomar às dez horas, pego na bicicleta e pedalo à beira do Nabão, que encontro alto e turbulento, devido às chuvas dos últimos dias. Algumas árvores nuas, com seus musgos, fetos e líquenes, outras com folhas amarelas, as restantes sempre verdes. Verdes são também os campos, com pormenores contrastantes: os citrinos nas árvores, as bagas coloridas, cor-de-laranja no espinheiro, vermelhas na roseira brava, alguns caules e troncos de cores vivas... Passo por um rebanho de ovelhas. Vejo dois pescadores à beira do açude. Esqueço dores, angústias e frustrações. Esta beleza cura-me de todos os males.
sábado, 26 de junho de 2010
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Foi abençoada, Manuela, encontrar na natureza esse alívio existencial.
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