Manuela Degerine
Capítulo XXXIII
Passeio pelos museus:
Museu da Cidade e Museu Rafael Bordalo Pinheiro
No Museu da Cidade, aponto Felicitas Julia Olisipo, o nome latino de Lisboa e a frase de Estrabão (Geografia, livro 3°, primeira parte): o rio é muito rico em peixe e abundante em ostras. Tomo aliás nota desta descrição cada vez que venho ao museu... E até a cito num romance. Agora, olhando para uma litografia do século XIX que representa o Palácio das Necessidades, no largo do qual passam vários cavaleiros, ocorre-me que seriam hoje ciclistas – vemos cada vez mais por Lisboa, não é?... E um quadro de Albertino Guimarães, Largo da Senhora da Saúde, pintado em 1839, mostra uma rua da Mouraria que não reconheço: resta a igreja. Mas, de então para cá, ganhámos a tão bela calçada representando a projecção da sombra da igreja. E... também ganhámos o centro comercial da Mouraria com o que lá dentro se passa. (Esta frase não é apenas irónica: gosto de deambular por este espaço heteróclito, de aqui comprar quiabos, lentilhas e chá indiano.)
Vejo a exposição que assinala os cem anos do Museu da Cidade: Lisboa tem histórias. Aponto os versos de Bocage sobre a estanqueira do Loreto, célebre pelo tamanho do nariz: Disse-lhe um sério taful / Que tabaco lhe comprara: / A sua loja é pequena; / Por que não vende na cara? / Deu a estanqueira um espirro / Gritam os vizinhos seus, / Julgando ser terramoto: / Misericórdia, meu Deus! A fotografia da jovem peixeira Ilda Fernandes, eleita Rainha dos Mercados em 1929, aos dezasseis anos, ajuda-me compreender alguns fados (A Rosinha dos Limões, por exemplo; cuja letra, como os leitores se recordam, se conclui com um engraçado atalho narrativo: ...fico pensando / Que, qualquer dia, por graça / Vou comprar limões à praça / E depois caso com ela). Na mesma exposição, uma imagem legendada Pretas calhandreiras leva-me a recordar uma palavra que ouvi, em várias ocasiões, a minha mãe empregar a propósito de um ou outro maldizente: é um calhandreiro. Uma metáfora eficaz pela pestilência que evoca, sendo o calhandro um pote para o qual se despejavam os bacios; cabia aos mais pobres, não raro escravos, irem despejar, com frequência para o rio, aquela sujidade: os calhandreiros, portanto. Ora, como todos sabemos, os maldizentes arrastam matérias não menos fedorentas...
No Museu Rafael Bordalo Pinheiro encho uma página com palavras e frases. A que eu prefiro: o arola. Para Rafael Bordalo Pinheiro arola é o português que voltou rico do Brasil e se quer dar ares; mas podemos modernizá-lo. Encontramos por aí diversas espécies de arolas, algumas internacionais, as outras não... O arola automobilista. O arola africano. O arola da Portugália. Casta lusitana: a arola do balcão. Por ser nativa desta zona social, só temos a dificuldade da escolha. Caracteriza-se pela insolência no trato com os fracos que ali se expõem, utentes ou clientes. Podemos indicar a subespécie: arola ao balcão da Air Portugal, arola ao balcão da segurança social... Uma arola rara em França, país que tem, em contrapartida, outra variedade muito feia, o revisor gallicus: o arola revisor nos transportes públicos. Em Portugal, pelo contrário, esta variedade parece rara: no que me toca, nunca encontrei nenhum, só funcionários amáveis – é um prazer apresentar-lhes o bilhete. Cabe aos leitores estabelecerem as suas próprias listas e, se tiverem paciência para isso, comunicar-mas... para eu me rir.
Passo duas horas acompanhando as desventuras do Zé Povinho com a albarda, o manguito e a moleza. (Mais obscura do que ele: a Maria da Paciência.) Legenda de O Zé Povinho na História: “Nunca se levanta que se não deite” (Comédia Portuguesa, 23 de Julho de 1903).
Comove-me a auto-caricatura na qual um Rafael Bordalo Ribeiro, curvado e pesado, com a luneta caída, pede ao Rafael Bordalo Pinheiro jovem, perspicaz e insolente: “Por favor, empresta-me o seu lume?”
terça-feira, 29 de junho de 2010
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