sábado, 26 de junho de 2010

Ontem e hoje: o crescimento das crianças (2)

Raúl Iturra




Essa é a oscilação entre adulto e criança. Em adulto, passa a ser uma lembrança simpática e divertida, enquanto que em criança, um pesadelo regado em lágrimas. A vida adulta é a construção do comportamento social e pessoal dos mitos do saber do tempo cíclico, que um dia foram agir real, e que passam a dizer o que fazer. Como quando dois adultos não se entendem, não gostam um do outro e os comentários são sarcásticos, irónicos, de desencontros, Como as crianças fazem. Só que não dizem o teu pai bate no meu, simplesmente dizem a tua teoria e má e não é o que dizes. Mas no corredor, nunca em frente. Em frente, passa-se…sem cumprimentar, ou com um cumprimento de circunstancias, formal. Ou com uma zanga directa, na cara do outro. Como essa que tive a oportunidade de observar, enquanto preparava Vilatuxe na Inglaterra de 1973. Era o seminário da sesta feira, famoso por anos. Presidia Jack Goody e atendíamos vários, entre os quais Meyer Fortes, Allan Macfarlane, Caroline Humphreys, Steven Hugh-Jones. Falava Sir Julian Pitt-Rivers. Sobre Malinowski. Sir Edmund Leach quis chegar tarde, ainda que era o Decano do sítio onde sempre tínhamos o seminário de debate semanal. Entrou com o barulho no corpo e espalhou o barulho pela sala, enquanto sentava de costas á mesa. Quando Pitt Rivers menciona ter sido o mais novo e último discípulo de Malinowski, essa gloria que, reconhecida, da prestigio, Leach virou-se, bateu na mesa, disse que não era verdade e acrescentou que o texto todo lido por Pitt-Rivers, não era verdade também. Os mais novos calamos, assustados. A sabedoria de Meyer Fortes calmou aos contingentes. Até Jack Goody fugiu, saiu, não quis ficar. Porque enquanto o adulto é útil ao outro, há sorrisos, visitas, passeios. Porque ainda não há crescimento no outro, e o outro pensa que é ignorando a sua senioridade, essa que o faz pensar ser adulto. Quando já o não o é, distancia, maledicência, não convites, esquecimentos, um dia de estes, tem que ser, de certeza. O confronto. Os factos e as frases que a nada conduzem. Mas, mantêm o entendimento estrutural. A criançada é útil, enquanto tem o que interessa ao outro o que o outro tem. Como digo no meu nunca reeditado livro tão procurado sobre a memória social, A construção social do insucesso escolar.


Entre crianças, este desentendimento é conjuntural. A criança orienta o comportamento do adulto (Iturra,1996 e 1997), mas não tem poder na vida social, como o adulto tem. A criança tem poder conjuntural sobre os seus pares, enquanto saiba o que o outro não sabe e pode ajudar. Como traduzir Hamlet de Shakespeare (1660-1663) a uma turma inteira, que do autor e a sua língua… nada sabe. Como possuir os brinquedos a moda ou ter livros a mais. Livros que interessam para estudar, aprender, saber. Ou saber lidar com aparelhos materiais que nos não sabemos. Estas oscilações são as do adulto - criança ou a do criança-feita-adulto. Parece um pessimismo meu da vida social, mas eu diria apenas que é a base da interacção recíproca. È tão claro no relato da troca que Malinowski faz dos ilhéus da Kiriwina, o kula: eu dou a quem tem a fama de devolver, de restituir. Tão bem explicitada pelo citado Mauss (1922) e usada em 1938 por Meyer Fortes para entender a relação entre grandes e pequenos. Por Jack Goody em 1973. Por Gomes da Silva em 1993. Por mim em 2008. Permita me o leitor, me agarrar ao estatuto por mim acreditado, para dizer que também uso a análise da reciprocidade, análise que percorre todos os meus textos. A reciprocidade, fundamental no crescimento das crianças, está baseada na desigualdade de bens. Adam Smith teve razão na sua definição de trabalho (1776): há a inclinação natural a trabalhar para fabricar todo o que eu posso e sei, mas para trocar por todo o que preciso e nem posso fazer nem sei.

O crescimento da criança, passa pela aprendizagem universal da troca recíproca, negociada antes, como analisei no meu texto de 2007 e como desse texto se pode apreciar. Se de esta troca nasce uma afectividade, essa troca passa a ser a das emoções, a dos corpos. Quer para fazerem mais corpos, quer para estarem com o corpo e os sentimentos em paz, se houver compreensão de um pelo que o outro faz e quer fazer. E acompanha. É aí onde têm chegado as minhas crianças de ontem, hoje adultos que eu observo e sorrio de ver como são o que não eram. Como as lembranças da memória social é um mito do real vivido e transformado, enquanto cresce, pelo social, local e doméstico. Como vamos ver a seguir. Antes, é preciso lembrar do que disse, no começo desta secção: que há uma heterogeneidade na interacção adulto - infância, de varias entradas simultâneas e desiguais no tempo e na relação, que depende do assunto que as pessoas estejam a tratar. É verdade que nenhum adulto foi habituado ou, ainda pior, ensinado a tomar conta de crianças. Apenas viu, não aprendeu de forma experimental, menos ainda, teórica. A sua teoria nasce do que sofreu. Do que viveu. Acredita-se na nossa cultura ocidental, nunca na Melanésia ou outros sítios como entre os Picunche, que a relação entre adulto e criança é natural, espontânea e óbvia. No entanto, pelo que sabemos, não é bem assim: enquanto mais pequenos, os novos procuram uma perigosa autonomia. Estabelece-se uma luta para a subordinação: não há adulto que queira largar a criança.

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