Carlos Leça da Veiga
A Democracia do ser, do ter e do saber (continuação)
Numa República, como já atrás está referido, para ser diferente duma Monarquia – para ser um regime democrático – a figura do chefe de Estado não pode existir. Assim, de facto, convêm repetir, só há uma república no mundo, a da Helvécia.
No modelo constitucional parlamentar usado em Portugal o legislativo nacional, para além de determinar qual é executivo é, também, o instrumento privilegiado da vigilância permanente dos actos governativos. O programa do governo têm de ter a aprovação prévia do legislativo e, também, a própria competência política do governo, na sua quase totalidade (Artigo 197.º da Constituição), que não as competências legislativa e administrativa, tem de ser sujeita à apreciação do parlamento. Como se isso não bastasse para adulterar a regra montesquiana da separação das funções do poder do Estado, o legislativo possui o direito de interferir, decidida e decisivamente embora com o consentimento do chamado chefe do Estado – um verdadeiro atentado à Democracia – na organização de instâncias da Justiça, qualquer delas com importância evidente para o funcionamento da Democracia desde que, acentue-se, tenham uma separação totalmente completa dos outros Órgãos de Soberania, uma particularidade decisiva jamais possível de cumprir-se com o estatuto constitucional agora em curso. Estão neste caso o Conselho Superior da Magistratura, o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas com o que, desse modo, é impedida a separação efectiva e real das três funções fundamentais do poder do Estado. O legislativo, enquanto como tal, só deve legislar por iniciativa própria, imediata ou mediata, esta última, a solicitação, por direito próprio, do Conselho Presidencial, a pedido da Assembleia Judicial ou, democraticamente, a pedido dum determinado número de eleitores. A questão da separação das funções do poder de Estado é um problema basilar para desenhar uma arquitectura francamente melhorada da Democracia e, em seu favor, é obrigatório darem-se os passos mais consentâneos com a ponderação objectiva do nível de diferenciação e complexidade da estrutura social dos nossos dias, da necessidade imperiosa de atender-se à participação política dos cidadãos e, por igual, com respeito extremo dos imperativos da equidade da Justiça Social.
O imobilismo das concepções constitucionais parlamentar e presidencial tal como estão em vigor – sejam quais forem as suas variedades – não pode continuar a ser ditado pelo pensamento político, cultural, económico e social velho dalguns séculos quando a Democracia era, tão-somente, um regalo para a minoria dos possidentes do ter, do ser e de muito pouco saber. Hoje – isso tem de ser uma regra da Democracia universal – exige-se dar a melhor resposta possível a todos, que todos, perante a lei, sem excepção, mau grado as diferenças sociais vigentes, têm o direito inalienável de serem considerados como os detentores legítimos do ser, do saber e do ter.
Tem de haver um dispositivo constitucional nacional a que deve caber a totalidade da função judicial e judiciária e, para tal e tanto, deverá existir um corpo eleitoral próprio, com um calendário eleitoral desfasado daquele do corpo legislativo que terá de ser – por ser necessário e por ser justo – o mesmo que elege o legislativo nacional, porém, para evitar sobreposições indesejáveis, terá de ter círculos eleitorais diferentes geradores da composição duma Assembleia Judicial. A Justiça, cujo mau funcionamento – para não adjectivá-lo com a rispidez mais adequada – tem sido um empecilho inaceitável para a população, essa, tem de passar a estar separada, por inteiro e por completo, das outras funções do poder do Estado. Antever a existência duma Assembleia Judicial não pretende ser a criação duma outra câmara à semelhança do que existe tanto em alguns regimes monarquistas ou republicanos parlamentaristas como, por igual, naqueles republicanos presidencialistas. Não parece correcto defender-se um regime de duas câmaras com hierarquização de poder mas sim, apenas, ao eleger uma Assembleia Judicial, garantir que os Tribunais – e todo o aparelho da Justiça – passem a depender em directo e em exclusivo da vontade democrática deliberada pela Assembleia Judicial. Os deputados legislativos e os deputados judiciais – mas não só, como veremos – para efeitos deliberativos sobre certas matérias (alterações constitucionais, orçamento do estado, aprovação de tratados, declarações de estados de sítio, emergência, guerra e paz) constituir-se-ão como uma parte dum Congresso da República.
Só com uma separação absoluta das funções executiva, legislativa e judicial é que será possível, com o rigor necessário e com aquele mais possível, criar um sistema de vigilância recíproca, virtuoso e exequível, por exacto, o dos “checks and balances” dos norte-americanos ou aquele do “le pouvoir arrête le pouvoir” vindo do estado francês.
O sistema constitucional em vigor em Portugal – nenhum dos demais é exemplo satisfatório – vive da herança dum passado em que a defesa da liberdade era a sua feição dominante. Embora no texto actual haja uma explanação extensa e bem detalhada doutras virtudes que não só as da liberdade política, na verdade, as possibilidades reais das suas efectivações são mais que diminutas e tal como estão prescritas, à partida, liquidam qualquer direito de reclamação com mais significado para o eleitor do que aquele duma simples declaração de repudio ou duma manifestação de indignação cuja resposta mais tradicional manda que quaisquer insurgentes devam aguardar uma eventual resposta política num próximo acto eleitoral legislativo.
Hoje em dia a exigência da população tem de ir ao ponto de não poder descurar-se que o principio da igualdade, de cada um e de todos, perante a lei é coisa inseparável duma igualdade efectiva de oportunidades para todos, uma particularidade assegurada por força dum acesso garantido aos recursos básicos da sociedade cuja equidade distributiva tem de ser medida pelo principio diferencial de as desigualdades sociais deverem resultar em benefícios dos menos desfavorecidos. A igualdade liberal – a formal – é a única que tudo indica poder dizer-se estar garantida completa e decisivamente pelo actual texto constitucional português. A igualdade democrática – a substantiva – não será por ter a dignidade de ver-se indicada na Constituição do Estado português que, de facto, pode considerar-se uma realidade social verdadeiramente tangível.
A Democracia do ser, saber e ter é a maior exigência política dos tempos que correm e a sua concretização mais ou menos concertada não pode viver da mera contestação e reivindicação sindicais – como tem sido – outro sim, duma luta política por um texto constitucional que, sem ter duas leituras possíveis, assegure com rigor e precisão, duma vez por todas, a trilogia da igualdade, da liberdade e da fraternidade sem cuja, a consequente solidariedade social é afectada e, como é óbvio, no caso nacional – o que, agora, mais interessa – os resultados estão à vista. Se, para muitos – essa trilogia – já não passa duma expressão serôdia de exaltação democrática importa, agora, voltar a reafirmá-la e impô-la como o obstáculo mais sério a opor com firmeza não só aos conceitos sócio-políticos liberais como, também, aos do colectivismo. Se os primeiros incompatibilizam a liberdade com a igualdade, os segundos incompatibilizam a igualdade com a liberdade. Se os liberais decretam que liberdade e igualdade, uma e outra, por força das regras do mercado – regras com suporte falho de objectividade positiva – não têm de ter sentidos coincidentes e privilegiam a liberdade, os colectivistas – com falhas não menos importantes – insistem que o primado da igualdade, por contingência, pode ter de prejudicar o da liberdade. O bipé que junta a liberdade com a igualdade não consegue sustentar-se sem dispor daquele outro braço que é o da fraternidade. Esta fórmula inaugural da contemporaneidade tem de ter uma tradução constitucional sólida, indestrutível e com um só sentido interpretativo.
sexta-feira, 4 de junho de 2010
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São realmente assuntos muito importantes e pouco discutidos.
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