sábado, 12 de junho de 2010

Outra Constituição, outra Democracia, uma Terceira República – 26

Carlos Leça da Veiga

O 25 de Abril mais autêntico fez-se nas ruas

Plebiscitar uma qualquer Constituição – quantos, e quantos, projectos podem e devem ser admitidos – é coisa fundamental para depois, e só depois, com propriedade, poder falar-se de Democracia. A que rege, hoje em dia, os destinos nacionais ficou pela sua aprovação em ambiente constituinte e não teve a dignidade de querer descer à rua, à mesma rua que fez o verdadeiro 25 de Abril, para aí, em plebiscito, conhecer a sua validade popular, logo a verdade democrática adoptada pela população.
A composição político-partidária da Assembleia Constituinte de 1975 produziu uma manta de retalhos em que aqueles relativos aos direitos sociais, como exemplo importante, não comportam qualquer compromisso político bastante para, de facto, serem impositivos.
A obrigação primordial duma nova Constituição será aquela de eliminar os erros do antecedente, preservar quanto, de trás, seja vantajoso ou apreciável, porém, deverá obrigar-se a acrescentar-lhe tudo quanto capaz de, por sua intermediação consistente, consiga assegurar relações sociais de solidariedade alicerçadas numa participação política activa, esta mesma capaz de oferecer a garantia do exercício tanto dos direitos, liberdades e garantias individuais como, por igual, dos direitos sociais.
A formação de maiorias deliberativas não pode ficar-se pela simplicidade actual, salvo se os decisores políticos, na sua pobreza intelectual, entenderem que a própria sociedade humana – no caso a portuguesa – é desprovida duma evidentíssima, complexidade política, económica, cultural e social que importa respeitar-se.
Após o 25 de Abril, as grandes alterações políticas, culturais, económicas e sociais produzidas face ao tempo acabado de ser ultrapassado tinham de ter tradução constitucional já que era, e é, de justiça e de direito, serem devidas aos Cidadãos e às Cidadãs. Uma delas tinha de ser a de querer ver garantida, com clareza explícita e simples, a efectividade inquestionável dos direitos sociais, ou promocionais, que se já são apontados na Constituição em vigor, estão redigidos sem quaisquer condicionalismos susceptíveis de impedir, em qualquer ocasião, ao sabor das conveniências parlamentares maioritárias ou, ainda, das disposições emanadas da ditadura burocrática de Bruxelas de serem-lhes cerceadas quaisquer das suas dimensões, exactamente pela imprecisão com que são expressas na letra constitucional aprovada.
As redacções das disposições constitucionais quanto a direitos sociais têm de ser feitas de tal modo que, de facto, sejam regras inquestionáveis quanto à obrigatoriedade do seu cumprimento e, também, não interpretáveis, tudo ao invés das actuais que, a respeito de direitos sociais, outra coisa mais não são que meras recomendações. Há uma diferença indisfarçável face ao modo como estão prescritos os direitos e deveres fundamentais.

Outro dos erros cometidos pela Constituição actual, e um que brada aos céus – a mais elementar lisura democrática é obrigada a condená-lo – é o da manutenção das funções fundamentais do poder do Estado sem a sua separação efectiva, rigorosa e inquestionável, de tal modo qualquer mínima promiscuidade não possa ser possível. Essa promiscuidade nas funções do poder do Estado é totalmente indesejável e, hoje em dia, é uma prática política corrente. A Assembleia da República e a Presidência da República, ambas, na diversidade das suas modalidades de actuação, ditam grande parte da organização de cúpula da Justiça e, assim, não só asseguram ter controlo bastante sobre a função Judicial do Poder como, também, passam um atestado de menoridade à população portuguesa ao negar-lhe uma intervenção muito mais directa na entronização independente das estruturas superiores da Justiça. No Conselho Superior da Magistratura a própria presença de magistrados eleitos pelos seus pares distorce a boa prática democrática. A Justiça tem de estar ao inteiro serviço e á ordem duma vontade eleitoral da população e os seus quadros superiores têm de ser sancionados pela vontade eleitoral nacional. Todos os Órgãos da Soberania têm de emanar directamente da vontade geral. Tal como o Governo dimana da Assembleia da República, o Conselho Superior da Magistratura terá de resultar da vontade directa duma Assembleia inteiramente votada pela população eleitoral nacional.
Tem de reconhecer-se a feição recuada e hipócrita da filosofia que preside à Constituição da República Portuguesa.
No seu “Preâmbulo” vem expresso que “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português….…de assegurar” – entre outras variadas afirmações de fé, senão mesmo de pura hipocrisia – “o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para um sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português”. É impossível deixar passar em branco dois aspectos difíceis de aceitar sem ter de fazerem-se-lhes reparos. O primeiro será dirigido para a afirmação do “primado do Estado de Direito democrático” o que, sem querer negar-lhe a autenticidade do principio e da sua inquestionável necessidade, isso não significa poder ficar a conhecer-se-lhe o seu significado real mais autentico porquanto, para tanto, importa saber-se ao serviço de que Justiça estará esse Direito e, dessa Justiça – aquela de que a população precisa – a Constituição não se ocupa por não dar-lhe as garantias mais imprescindíveis. O segundo reparo que deve fazer-se tem de dirigir-se ao propósito constitucional “de abrir caminho para a sociedade socialista” o que, por evidência, exigia estarem formulados os passos imperiosos de toda a política necessária em seu deliberado favor que, bem sabido, ao arrepio da prédica populista constitucional culminou num insucesso – o famoso socialismo na gaveta – coisa que, aliás, digam o que disserem, foi intenção premeditada e que só pode ficar na História como um exemplo edificante da mais pura hipocrisia política e ética.
Logo depois, no início do articulado constitucional, no seu Artigo 1º, começa por afirmar-se que Portugal é uma República soberana “empenhada na construção duma sociedade livre, justa e solidária”, uma linguagem alternativa consequente a ter havido, anos sobre anos, uma reclamação por parte das correntes mais reaccionárias para não aceitar-se que houvesse menção ao que chamam de ideologia e, também, nunca, uma qualquer feição constitucional que classificam de programática. Então o solidarismo não é uma corrente tão politicamente comprometida como o é o socialismo ou o capitalismo?
A obra política do francês Charles Gide – a solidariedade e o solidarismo – que tanto satisfez todos os oportunistas dos anos vinte e trinta de século XX não foi outra coisa mais do que uma fuga táctica ao medo inspirado pelo socialismo.
A Constituição de 1976 – dalgum modo uma consequência lógica duma alteração profunda da vida dos portugueses – por força do seu conteúdo de sabor socialista era acusada de ser programática mas, agora, como o solidarismo não assusta o capitalismo, já não é acusada do defeito que antes lhe vislumbravam. E o cooperativismo não será, por igual, um alicerce programático e uma intenção deliberadamente ideológica? Como não mete medo aos reaccionários tem autorização para figurar na Constituição!
Um pouco mais adiante, na Constituição da República, no número 2 do seu Artigo 7º, aquele que trata das “Relações Internacionais” está afirmado “ipsis verbis” que “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de outras quaisquer formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares …..”. Alguém já reparou no cumprimento deste preceito constitucional? Para que consta na Constituição?
É mais outra forma de hipocrisia política ínsita na Constituição e reveladora do baixo estofo moral dos Constituintes bem como de quantos, ao longo dos anos, têm tido a responsabilidade das várias revisões constitucionais.
Portugal não se declara, com a frontalidade mais exigível, adverso do imperialismo, do colonialismo etc., etc. mas, tão-somente, “preconiza” a sua abolição, isto mesmo – tremenda incongruência – depois de ter sido um actor activo e decidido da descolonização dos seus antigos territórios coloniais! O que era um erro político português – a sua prática colonialista e o seu sentido imperialista – foi sujeito, e muito bem, a uma condenação decisiva, peremptória e indiscutível – a descolonização – contudo, discrepância flagrante, quando cometido por outros estados, no pensar dos Constituintes portugueses do pós 25 de Abril, a esses, que, de facto – coisa indubitável – são imperialistas, colonialistas, agressores, dominadores e exploradores basta, tão-somente, que lhe seja preconizada – preconizada – a abolição desses seus comportamentos verdadeiramente inapropriados. Homens de grande estofo ético e uma notável coragem política, esses Constituintes!
Embora a independência de Portugal esteja formalmente referida na letra da sua Constituição – veja-se o número 1 do Artigo 7º e a alínea a) do Artigo 9º – nenhuma das suas disposições é taxativa na recusa frontal, sine qua non, de quaisquer formas de submissão política, económica e militar imposta, a Portugal, por quem quer que seja.
Portugal, a Constituição da sua República, contenta-se em só preconizar – nada mais que isso – a abolição do imperialismo e, também, de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos. É bastante recuado e suficientemente hipócrita.
Se no Artigo 7º da Constituição todos os seus números não passam de pura retórica que, em concreto, a nada obriga, o Artigo 8ª, no seu número quatro – o Artigo da subserviência ao exterior – é taxativo na aplicação, entre nós, de disposições e de normas exógenas quando reza que “As disposições dos tratados que regem União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das suas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União……”. Do Artigo 7º para o 8º os constituintes ganharam fôlego para serem impositivos sem importar-lhes terem de amesquinhar Portugal, enquanto Estado soberano. No Artigo 7º, só recomendações para, como convêm, nada definir e nada de ser impositivo não vá, desse modo, perturbar-se a vontade dos potentados do exterior, no caso, muito em particular a dos ianques; no Artigo 8º toda a imposição para tudo aceitar, no caso, a dos potentados francês e germânico que, pura evidência, dominam a União Europeia. O prato das lentilhas pode muito!

1 comentário:

  1. A Constituição devia ser o mais concreta possível e tanto quanto possível breve, mas tão rigorosa quanto possível, por forma a todos saberem sem "interpretações" o que nos rege.Assim, estamos sempre ao dispor de quem "reina" no momento.

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