sábado, 5 de junho de 2010

Outra Constituição, outra Democracia, uma Terceira República –19

Carlos Leça da Veiga

Daquilo que devo queixar-me e de como entendo dever fazê-lo.


A destruição do regime salazarista viveu não só da contribuição muito significativa, perseverante, esforçadíssima e quantas vezes heróica dos anti-situacionistas, fossem eles os independentes, fossem, sobretudo, os organizados, civis e militares mas, também, dever-se-á acrescentar – porque não pode nem deve esquecer-se – do beneficio duma ajuda, aliás interesseira, facilitada pelas necessidades tácticas da política ianque.

A ditadura salazarista, coisa de tão má memória, depois de ter desfrutado duma muito longa protecção por parte da chefia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), nos finais dos anos sessenta e, sobretudo, no inicio dos setenta, começou a deixar de poder contar com ela, tudo por força da satisfação dalguns dos interesses políticos ditados pelas vicissitudes da chamada “guerra fria”. Na conformidade dalgumas das conveniências políticas consideradas mais necessárias ao desenvolvimento duma nova atitude da política internacional dos Estados Unidos da América do Norte (EUAN), designadamente no seu conflito com a Rússia Soviética (URSS), era obrigatório, para aquela potência mundial ter de assumir formas de amolecimento táctico na agressividade mantida, em frio, contra a URSS. Disso resultaram vantagens para a corrente de oposição à ditadura salazarista e, depois, marcelista. A vitalidade contestatária da população portuguesa que o 28 de Maio de 1926 muito fez tremer e esmorecer, essa, muitos anos após, uma vez reconhecido o logro político montado, haveria de prosseguir num crescendo de oposição ao “estado novo”, circunstância que o tempo tornaria muito mais perceptível e vigorosa, sobretudo, depois da candidatura à Presidência da República, em 1957, do General Delgado para, mais tarde, nos primeiros dos passados anos setenta, ter beneficiado bastante com a perda suficiente, mas inquestionável, da protecção ianque dada, até então, ao regime ditatorial salazarista. Com efeito o amolecimento táctico da agressividade latente nas relações entre os EUAN e a URSS, por hipocrisia cautelosa, impôs aos EUAN a necessidade de demonstrar um refrear definitivo da sua protecção aos regimes ditatoriais do ocidente europeu – português, grego e castelhano – então, sob sua custódia. Acrescente-se que, por parte dos EUAN, no caso particular de Portugal, esse amolecimento e o consequente abrandamento da protecção oferecida ao anticomunismo salazarista teve de ser um tanto mais acrescido pela necessidade de eles mesmos, EUAN, ficarem em melhores condições para dar àquele seu adversário principal, e ao mundo, uma demonstração, com a visibilidade bastante, da sua sempre anunciada e constantemente reiterada política de defesa intransigente do que conclamam como democracia e como direitos humanos traduzida, à época, pelo apoio dado aos Movimentos de Libertação das, então, colónias portuguesas, contrariando deste modo a vontade do regime do “estado novo”. Este posicionamento dos EUAN, mau grado adverso aos interesses do regime salazarista, um seu aliado de sempre, impôs-se-lhe para dar credibilidade ao seu proclamado anticolonialismo, uma atitude que, de caminho, como retorno consequente, a seu tempo, haveria de dar-lhe vantagens políticas no mundo já em franca descolonização.


Na verdade, os EUAN necessitavam de apresentar-se a esse mundo com uma bagagem discursiva suficiente para, sob disfarce, poderem começar – recomeçar – uma sua ingerência política de tal modo viesse a culminar numa futura pilhagem a ser feita livre da concorrência, tanto dos colonizadores em retirada como, também, daqueles do leste europeu que projectavam conseguir instalar-se. Assim, para satisfazer as suas declarações de acendrado democratismo, não só foram obrigados a mandar por termo aos regimes fascistas em funções nas áreas da sua influência absoluta, como fossem os regimes de Portugal, dos estados grego e espanhol mas, por igual, a exigir que Portugal, um caso com muitas particularidades colonialistas, avançasse para dar a liberdade imediata às suas colónias africanas. A não ser assim, os EUAN perdiam a sua face e os seus futuros benefícios, frente aos movimentos de libertação cuja vitória final, se já estava antevista, a sua futura exploração financeira – nada de inocências – já estava bem equacionada.

A perda, aliás justíssima, do que restava do império colonial português tinha de ter, como teve, consequências altamente perturbadoras para a vida nacional portuguesa sabido, como era, que todo o manancial financeiro subsidiário do colonialismo terminou e, por fim – esta é a realidade – sem os rendimentos coloniais acessórios, teria de viver-se com as consequentes necessidades e, muito principalmente, com outra organização política, económica e social tal como, também, com novas modalidades de relacionamento internacional. Uma e outras, por força dos interesses mais abjectos, nunca conseguiram vingar, melhor dito, a tê-las havido, foram sempre rechaçadas e Portugal, mais uma vez, viu-se enredado nas malhas tecidas fora de portas pelos agentes maiores dos imperialismos sobrantes, o ianque e o centro-europeu. Uma fortíssima razão de queixa.

O minorar da brecha aberta por essas consequências políticas e económicas perturbadoras do viver português, ou um seu possível colmatar, só podia resultar duma forma de organização política e social afirmada num texto constitucional que tivesse, ao seu alcance indubitável, a possibilidade de dispor e impor a maior equidade social possível e, também, fosse capaz de estabelecer vínculos muito fortes de respeito e obediência rigorosa às regras fundamentais dum estado de direito, sucedâneo natural, note-se bem, dum necessário estado de justiça. A solução encontrada esteve muito longe de ser satisfatória. Foi um erro clamoroso, porquanto não só o modelo constitucional adoptado não revelou capacidade para moldar, com o vigor mais preciso, um estado de justiça política e social como, também, não menos lamentável, não contrariou com frontalidade e firmeza políticas a manutenção de quaisquer formas políticas depreciativas de dependência do exterior. Com efeito manteve a permissão, vinda da anterior política ditatorial, da permanência portuguesa num pacto político-militar multilateral – a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – como, também, anos após, permitir, mais outra vez sem consulta popular expressa, ter-se corrido a entrar não num conglomerado económico europeu, por evento, talvez, vantajoso, mas sim em oferecer-se a suserania estratégica do país a um projectado estado europeu de tendência federal – a União Europeia (UE) – que é dominado pela parceria calculista, porém, historicamente impossível de consolidação, do estado germânico com aquele franco.

Em 13 de Outubro de 2000, no jornal “O Independente”, o Professor João Ferreira do Amaral deixou escrito “O que se passa hoje na integração europeia é um insidioso mas nem por isso menos escandaloso processo de destruição da autonomia dos estados-nação, em particular dos mais pequenos. Olhemos para o que se passa em Portugal” e, mais adiante “Por seu turno, as instâncias comunitárias não perdem pitada para humilhar as instituições nacionais”, passagens que, no texto, foram rematadas com “os portugueses, tal como os dinamarqueses, têm o direito de não ser uma colónia de Bruxelas”. OTAN, UE e Constituição, cada qual com modos próprios, são motivos de queixa que não devem escamotear-se. Há, ou não, razão para queixas amargas?

A concepção constitucional, que acabaria por ser desenhada na Constituinte portuguesa de 1975/76, desde logo, não soube expurgar-se – como entendo – dos erros que a história parlamentarista da nossa Primeira República (muito idêntica à da monarquia constitucional) já tinha deixado bem patentes e cuja réplica, por cautela ou por bom senso, deveria saber antever-se e nunca deixar que pudessem repetir-se.

Era imprescindível, senão mesmo obrigatório, fugir-se deliberadamente aos erros consequentes às permissividades, deficiências e insuficiências do funcionamento constitucional como, por sistema, começaram e passaram a ser cometidos, sucessivamente, desde 1822 e que, agora, como a actual experiência constitucional tem confirmado, mais outra vez, mostram existir. Salta à vista, serem desajustados e inconvenientes para a instituição dos comportamentos políticos, económicos, culturais e sociais mais ambicionados pela população portuguesa conforme o pós 25 de Abril bem soube afirmá-lo e, não fora o infausto 25 de Novembro – uma ingerência ianque – teriam conseguido vingar.

Em 1975, durante a elaboração da Constituição, dever-se-ia ter levado em linha de conta que a nova situação do país iria, de imediato, confrontar-se com uma agravante nunca antes sentida, por exacto, a resultante da perda completa dos rendimentos decorrentes da exploração colonial cujos, no antecedente, dum modo não despiciendo, excluídos os oriundos da emigração, sempre remediavam muitos dos prejuízos económicos endógenos, outros tantos daqueles causados pela sustentação duma guerra colonial devoradora e, também, não menos gravoso, pela manutenção deliberada duma péssima redistribuição do rendimento nacional, o resultado consequente e indesejável duma justiça social deficiente. Portugal, após a imperiosa Descolonização, precisava de respostas políticas arrojadas para a sua nova situação. Não teve, mais uma razão para dever queixar-me.

A verdade é que os constituintes não souberam, ou não quiseram saber interpretar, com a justeza mais devida, as condições económicas, culturais, sociais e geopolíticas que a dinâmica da nova vida portuguesa trazia consigo e a qual, logo no dia 25 de Abril de 1974, começou a ficar bem expressa pela demonstração resoluta da vontade popular de, ao invés duma tradição funesta, desta vez – daí a sua grandeza histórica – querer demonstrar-se e afirmar-se como um actor decisivo da sua própria História.

Os partidos políticos eivados duma metafísica ideológica sem razão de ser e, para mais, com ligações espúrias de vassalagem absoluta, firmadas, todas elas, fosse com o Oeste, fosse com o Leste, preferiram aceitar, ou negociar, as opções políticas chegadas do exterior, tal como, em definitivo, foi assegurado pelo 25 de Novembro de 1975, afinal, nada mais que um evento revolucionário de natureza política repressiva. Na verdade, como foi possível observar-se, os partidos políticos com assento parlamentar parece não terem querido reparar ou dar significado bastante ao facto de, desta vez, no 25 de Novembro, ao contrário do acontecido no 25 de Abril, a população, por perceber o logro, não ter esboçado manifestar-lhe quaisquer boas-vindas de aplauso ou de agradecimento. O 25 de Novembro – é bom não esquecer-se – teve de ser aceite pela população porém, de facto, nunca foi considerado como bem-vindo senão pelos possidentes e seus lacaios.

Dele, do 25 de Novembro, por mais que queiram negá-lo, não há quaisquer dúvidas de ter sido feito às ordens da vontade retrógrada dos ianques, para mais – assim ia o mundo – com o assenso tácito e táctico dos representantes do Leste europeu. Tudo estava combinada desde Yalta. Há, ou não, motivo bastante para dever queixar-me?

O 25 de Novembro foi a última revolução político-militar havida em Portugal, donde têm de ser-lhe atribuídas todas as opções políticas consequentes, a constitucional incluída que, quaisquer delas, umas após outras, em boa verdade, primaram por ter o condão de anunciar dificuldades sucessivas para quem só vive da venda da força do seu trabalho e que, com o decorrer do tempo, governo após governo, passaram a ser um pesadelo que, maltratou toda a esperança dum viver, ao menos, satisfatório para a generalidade da população. Quantos portugueses, de facto, estão satisfeitos com o que está a passar-se? Há, ou não, razões de queixa?

(Continua)

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