Carlos Loures
O caso do eterno retorno
O doutor Teles, professor de História, numa das suas habituais e chatíssimas digressões filosóficas, falou-nos de raspão na hipótese do eterno retorno, concebida por um maduro alemão com um nome arrevesado. Não demos qualquer importância aos meandros da explicação, mas retivemos a designação, que nos pareceu giríssima. O Abílio resolveu mesmo atribuí-la ao seu último invento – uma moeda de cinco tostões furada a que se atava uma linha de nylon, como as que se usam na pesca. Metida nos matraquilhos, a moeda accionava o mecanismo, saíam as bolas, após o que puxávamos a linha, recuperando a moeda. E assim sucessivamente. A coisa foi correndo bem durante muitos dias. Em todos os momentos livres, furos, faltas, íamos até à taberna do senhor Adrião, que ficava no pequeno largo em frente ao liceu. O velhote, satisfeito de nos ver jogar tantas vezes, depressa nos colocou na categoria dos seus melhores clientes e, ao fim da tarde, premiava-nos com o bónus de um jogo grátis (favor que nos fazia sentir falsos como Judas). Jogávamos com tal frequência que atingimos uma perícia fora do vulgar. Durante esse pequeno período de ouro de prática desportiva, acordei diversas noites com a mão direita fora da cama, dando o fatal e característico golpe de pulso com que costumava, com a bola parada no meio dos três avançados, fazer uma finta com o boneco do meio, sem tocar a bola, que rematava depois enviesada para um dos cantos da baliza, pondo os olhos tortos ao Manuel, que se considerava um super guarda-redes.
O que se deve ter passado foi que, ao abrir os jogos ao fim do dia, o senhor Adrião terá concluído que as receitas não correspondiam à fabulosa quantidade de partidas que o nosso grupo jogava. Uma tarde, quando íamos já a sair após uma fatigante sessão desportiva, o velhote chamou-nos e, abrindo o tabuleiro à nossa frente, disse:
– Estão a ver? Vocês jogaram vinte e dois jogos, contei eu, e não há nenhuma moeda, pois esvaziei os «bilhares» todos a seguir ao almoço, antes de vocês chegarem.
E depois fez uma caritativa chantagem connosco: ele não chamava a Guarda, nem fazia queixa aos nossos pais e, em contrapartida, nós revelávamos o nosso segredo, dizíamos-lhe como é que fazíamos sair as bolas. Não nos foi preciso pensar muito para anuirmos. Se ele dizia aos velhos, estávamos lixados, o Abílio em particular, pois o pai, quando se zangava com ele, dava-lhe tareias com o cinturão do uniforme.
Encabulados, lá mostrámos ao senhor Adrião a fatídica moeda do «eterno retorno». Ele riu-se, parecendo até mesmo ter achado graça à invenção. Deu-nos uma reprimenda longa e bondosa, e concluiu exortando-nos a não tornarmos a fazer trapaça no seu estabelecimento. Mandou-nos embora em paz. Uma humilhação, uma autêntica vergonha. Nunca mais tivemos cara para lá voltar.
Os deuses, coitados, tinham-nos mandado todos estes avisos, mas nós fizemos orelhas moucas e prosseguimos teimosamente na senda do crime. A terceira ideia genial da temporada veio-nos do Manuel, que sempre fora mais dado às literatices do que às coisas práticas da vida. Estávamos já no fim da Primavera e tinham-se iniciado as sessões de cinema no Cine Esplanada: dois filmes por cinco escudos. A ideia era esperarmos que as luzes se apagassem e, entrando pela porta em que estivesse de serviço o Mário Holofotes, assim chamado por ser míope como uma rata cega e usar lentes que pareciam fundos de garrafas, passar-lhe para a mão rectângulos de papel de jornal cortados com o tamanho exacto dos bilhetes. Para reduzir os riscos da operação, ainda sugeri que tentássemos arranjar papel com a cor e a textura aproximadas das dos bilhetes. Iam-me comendo vivo! Isso era uma concessão ao medo, disse o Manuel (onde estava afinal a nossa ousadia?); era uma autêntica mariquice, acrescentou o Abílio, pois assim não tinha graça nenhuma. Tinha de ser papel de jornal, disseram os dois. Fui democraticamente vencido.
De facto, foi canja, o Mário rasgou-nos os papéis e nós entrámos. Porém, à terceira vez em que executámos este verdadeiro passe de alquimia, junto do Holofotes, na sombra, fora do alcance da pequena lâmpada que, cá fora, iluminava a entrada, estava o senhor Cordeiro, o gerente. Só o vimos quando tínhamos já entregado os «bilhetes» ao Mário. O Manuel foi agarrado e feito cativo, eu e o Abílio lá conseguimos fugir, mas tínhamos sido identificados. O Cordeiro deu uns safanões ao Manuel e o cegueta, cheio de ressentimento e mau perder, queria mesmo chegar-lhe a roupa ao pêlo. Houve gritaria, as luzes do recinto voltaram a acender-se e toda a cidade assistiu ao opróbrio do nosso gangue, pois, enquanto o Manuel era ali humilhado fisicamente, os nomes dos fugitivos eram gritados pelo Cordeiro e pelo Holofotes. Eu e o Abílio fomos, como se costuma dizer nos livros de História, «queimados em efígie». Um escândalo.
O Abílio não perdeu pela demora e levou o tratamento do costume. O meu pai, que usava métodos diferentes, chamou-me ao escritório onde fazia as escritas que complementavam o seu pobre orçamento de funcionário público e iniciou um longo discurso em que quase remontou à Idade do Bronze, passando pela Grécia antiga, para finalmente, apoiado por Sócrates, Platão e mais meia dúzia de super crânios, concluir que a dignidade, a honestidade e a honra são valores insubstituíveis. Eu ainda estava com algumas esperanças de me safar só com o relambório, mas o pior estava para vir – corte de saídas depois do jantar e aos fins-de-semana e suspensão da parca semanada (dez escudos) por tempo indeterminado. Isto é, todas as conquistas feitas penosamente ao longo de uma vida inteira perdiam-se num minuto. A propósito destas prelecções paternas, tão ricas em alusões filosóficas e em engenhosas metáforas, devo dizer que, quando me quero lembrar de algum ensinamento útil que o meu pai me tenha deixado, só consigo lembrar-me da sua bela receita de sangria – vinho tinto, gasosa, gelo, laranja, pêssego, de preferência um pouco verde... À modesta escala familiar, repete-se assim a cruel injustiça que a posteridade cometeu com o poeta ultra-romântico e grande jornalista Raimundo António de Bulhão Pato – pois sendo autor de uma boa dezena de obras, ficou a dever a celebridade à sua receita de amêijoas! Mas voltemos à narração da onda de tragédia que assolou o nosso gangue.
O Manuel foi o que teve mais sorte em matéria de represálias. A tia com quem vivia, pois a casa dos seus pais ficava numa aldeia relativamente afastada e ele viera estudar para a cidade, teve um desmaio quando soube do sucedido e ficou vários dias de cama. Depois andou mais de uma semana em que quase deixou de lhe falar, tratando-o por «senhor» nas raras vezes em que se lhe dirigia, o que, apesar de tudo, lhe deve ter doído muito menos do que a monumental tareia que o Abílio levou ou do que a cruel repressão económica e social exercida sobre mim.
Quando, já no último período, as coisas estavam lentamente a voltar à normal anormalidade, foi a minha vez de contribuir para a vaga de insucessos que naquele autêntico annus horribilis flagelou o nosso grupo. Durante um dos fins-de-semana em que fui forçado a ficar em prisão domiciliária, ao vasculhar gavetas para passar o tempo, descobri numa cómoda um punhado de moedas espanholas, despojos de uma excursão familiar a Badajoz, e, entre elas, uma de dez cêntimos. Era muito leve, parecendo feita numa liga de alumínio, mas embora ligeiramente mais espessa, tinha o mesmo diâmetro das moedas portuguesas de cinquenta centavos. E a ideia funesta perfurou-me implacavelmente o cérebro como um relâmpago de Satã. Logo que me foi possível, experimentei-a num jogo de matraquilhos de uma casa perto do quartel. Funcionou.
Por essa altura, tínhamos começado a jogar xadrez. Durante as semanas da minha reclusão, a minha mãe, furando o bloqueio imposto pela autoridade paterna e procurando orientar-me para tarefas positivas, como ela costumava dizer, ensinara-me a mexer as peças. Mal pude, transmiti este novo saber aos meus dois amigos. O Manuel entendeu logo a essência do jogo. O Abílio também, mas, para além de concepções estratégicas bizarras e de interpretações pessoais da cínica de Napoleão, tentava também fazer batota, empurrando uma peça com os dedos e outras, sub-repticiamente, com uma unha que, para o efeito, foi deixando crescer. Foi, portanto, durante o desenrolar de uma partida que expliquei aos meus sócios as linhas essenciais da nova ideia. Na altura, a peseta valia bastante menos do que o escudo, cerca de metade. Portanto, grosso modo, com cada escudo conseguiríamos cerca de vinte moedas de dez cêntimos. Uma autêntica mina. Ficaram entusiasmados.
O problema era conseguir as moedas, pois na cidade não havia casas de câmbio. Matutando, o Manuel arranjou uma solução: «o senhor padre Artur resolve-nos o problema», disse. A tia (tia-avó) era muito devota, muito ligada à igreja e às actividades da paróquia. O seu maior desejo era que o Manuel entrasse para o seminário, o que até essa altura conseguira ser evitado. O padre Artur era visita da casa, pois tinha sempre assuntos a tratar com a velhota. Como ele ia quase todas as semanas a Lisboa, bastava conceber uma endrómina e pedir-lhe que comprasse as moedas. Nem foi muito difícil. O Manuel disse à tia, numa altura em que lá estava o padre, que ele e outros colegas do liceu (não falou em nós, pois a nossa credibilidade naquela casa andava muito por baixo) queriam construir jogos de damas para oferecer aos velhinhos do asilo. Os tabuleiros já estavam feitos (mostrou um exemplar em cartão, dobrável, fabricado pela Majora, que tínhamos comprado na Papelaria Bijou e retocado a guache para dar um ar mais artesanal). O problema eram as pedras, pois não dispunham de torno e em madeira, com a serra de rodear, nunca mais ficaria pronta a quantidade de jogos que queriam oferecer. Tinham tido a ideia de utilizar moedas, forrando-as de cartolina e pintando umas de branco e outras de negro (mostrou dois espécimes laboriosamente executados por nós). Eram moedas de cinco tostões, disse, mas ficava muito caro – vinte e quatro peças cada jogo, dava doze escudos, uma fortuna. Ele tinha ouvido dizer que havia umas moedas espanholas, de dez cêntimos, boas para aquele fim. E, com pouco mais de um escudo, completava-se um jogo. O problema é que só num cambista se podia encontrar as moedas. Sensibilizados, os velhotes trocaram comovidos olhares cúmplices. O padre, dando estalos de comoção com a placa dentária, ainda disse que não era legal usar dinheiro para aquele fim. Mas tendo em conta a boa intenção... E lá recebeu os trinta e tal escudos que, entre os três, tínhamos reunido. Eu e o Abílio começávamos a ficar impacientes com a morosidade do processo. Chegámos mesmo a colocar a hipótese de desistir. O Manuel acalmou-nos, «a ideia não tem pressa», argumentou, citando-nos um Hegel de cuja existência na altura nem suspeitávamos. De facto, passados dias, apareceu-nos com um saco de chita repleto de moedas que o padre trouxera.
A altura não podia ser mais oportuna. Foi pelo período dos santos populares e num descampado da cidade, junto ao campo da bola, estava montada uma espécie de feira, com circo, carrosséis, carros de choque, castelo fantasma, roda gigante, barracas de tirinhos e de comes e bebes. O trivial. Havia também, claro, um pavilhão com matraquilhos explorado por uma família cigana. A operação arrancou num sábado à tarde. Jogámos mais de trinta jogos antes de nos cansarmos. No domingo, depois do almoço, preparámo-nos para prosseguir o regabofe. Porém, logo que metemos a primeira moeda, o cigano que estava de guarda ao pavilhão não nos deixou puxar a maçaneta que fazia cair as bolas e abriu o jogo. Lá estava a maldita moeda espanhola metida no mecanismo. Apareceu imediatamente o resto da tribo, tirando-nos qualquer veleidade de fuga. Não nos deixaram sair. «Estamos lixados. Valha-nos Deus», murmurou o Abílio. E, em voz muito baixa, com esperanças profiláticas em qualquer milagre instantâneo, começou apressadamente a rezar um padre-nosso.
– Não percas tempo, Deus é como a polícia, nunca aparece quando é preciso – avisou-o, com um suspiro desalentado, o Manuel.
Porém, desta vez, a polícia até apareceu rapidamente, embora na nossa opinião não fizesse ali falta nenhuma. Os ciganos tinham telefonado para o posto da Guarda e, passados minutos, chegou o pai do Abílio e mais dois guardas. Era um homem grande, de gestos calmos e voz pausada. Fingiu não conhecer o filho ou qualquer de nós e perguntou ao cigano: «Então são estes os meliantes?» Fez tudo conforme as regras, identificou-nos, revistou-nos, encontrando-nos nos bolsos doses industriais de moedas de alumínio. Os ciganos foram buscar as moedas da véspera, parecendo-nos que tinham acrescentado muitas às que realmente tínhamos usado. Mas nem alegámos isso. A nossa posição ali era a de vermes obscuros, sem direito fosse ao que fosse e muito menos a defender-nos. Tudo o que disséssemos só podia piorar a situação. Os feirantes queriam ser indemnizados – por cada moeda espanhola uma moeda portuguesa de cinquenta centavos: nem mais, nem menos. «É justo», sentenciou o pai do Abílio. Sempre com uma serenidade de mau agoiro, tranquilizou os nómadas: iam receber o seu dinheiro. E levou-nos para o posto. Foi aí que o meu pai e a tia do Manuel nos foram buscar. O Abílio foi logo atendido ali. Num calabouço deserto, o pai deu-lhe o tratamento habitual.
(Continua)
quarta-feira, 2 de junho de 2010
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