Carlos Loures
O opróbrio dos párias -3
Tal como na hipótese do eterno retorno, tudo se repetiu: a tareia no Abílio, as represálias económicas e a supressão das liberdades fundamentais para mim e, quanto ao Manuel, criou em casa um clima de cortar à faca, tanto mais que não foi difícil à tia concluir que a história dos tabuleiros de damas para os velhinhos do asilo não passava de «uma infame e rematada aldrabice em que o malandrim e os seus sicários se tinham servido de um santo homem para atingir fins pecaminosos» (sic). E se não fosse o nosso amigo ter feito chantagem com a velhota não teria escapado ao seminário. A tia queria levá-lo imediatamente aos pais, contar-lhes a horrível marginalidade para que, mercê das más companhias, tinha deslizado, demonstrar-lhes que só o internamento no seminário, tão depressa quanto possível, o podia salvar de um futuro votado ao crime e sem esperança. Ele teve então de recorrer à chantagem, ao bleque maile, uma das poucas felonias em que o nosso gangue ainda não tinha incorrido. Subtilmente, insinuou que estava atormentado por um grave pecado. «Só um?», perguntou a velhota num dos seus raros assomos de ironia. «Particularmente por um», especificou o Manuel sempre cabisbaixo. «Confesse-se, confesse-se e por certo o senhor padre lhe dará a absolvição.» «Não é um pecado meu. É um pecado cometido pela tia e pelo senhor padre Artur.» E perante a tia, siderada de espanto e de terror, desbobinou a história da substituição da imagem seiscentista de Nossa Senhora da Conceição por uma santa nova, de cores reluzentes. Meses antes, ouvira o senhor padre Artur dizer à tia que tinham aparecido na igreja uns senhores de Lisboa a propor o restauro da carcomida imagem por um preço muito módico. Tinham mostrado uns papéis, umas credenciais do Patriarcado, mas ele nem quisera ver. Os senhores tinham todo o ar de gente honesta. E aceitara, agradecido, a proposta. A tia louvara o cura pelo bom negócio que fizera. E, de facto, os mesmos senhores apareceram umas semanas depois com a imagem totalmente remoçada, sem os buracos do caruncho e com cores vivas. Ora ao Manuel bastara-lhe deitar um olhar à santa para ver que o padre fora vigarizado. Aquela imagem era nova, não tinha qualquer valor comercial. Era apenas um manipanso com o mesmo tamanho e formas da santa verdadeira. O negócio decerto valera aos burlões umas boas centenas de contos. A imagem roubada era muito antiga, dizia-se que cópia fiel da Imaculada Conceição de Vila Viçosa e já existia em 1664, quando as tropas de D. João de Áustria tinham posto cerco à vila. Acreditava-se que tinha sido a santa que salvara a povoação e os seus habitantes. Portanto, ele, Manuel, não sabia o que fazer. Será que não deveria apregoar aos sete ventos a sua descoberta? Não seria um grande pecado esconder um tal segredo? Bastava pedir uma peritagem. Nem era preciso ser um grande especialista para descobrir a aldrabice. A imagem até tinha uma base em tabopan, material que certamente não existia na época do Senhor D. João IV. «Este segredo está a consumir-me», rematou ele, com um soluço a atravessar-lhe a voz, para dar um maior efeito dramático à engendrice (que, no entanto, correspondia inteiramente à verdade. O padre fora mesmo endrominado). A velha senhora ficou calada durante um grande bocado, digerindo as proporções dramáticas da revelação. Depois disse: «É capaz de ter razão. O senhor padre Artur é uma santa criatura, cujos olhos nunca vêem a maldade do mundo. Qualquer facínora, por mais estúpido e ranhoso que seja, o consegue enganar. O senhor cale-se, não diga nada a ninguém até eu poder discutir o assunto com ele.» E, debulhada em lágrimas, foi fechar-se no seu quarto a rezar. A decisão de forçar a entrada do rapaz no seminário ficou assim adiada sine die por este sujo expediente. Mas, como também costumava dizer o Manuel, na vida, tal como no futebol, os resultados é que contam.
Na segunda-feira, na casa de banho do liceu, trocámos umas breves palavras, pois além de estarmos proibidos de comunicar uns com os outros, até tínhamos vergonha de nos olhar, espelhos cruéis que éramos de um verdadeiro estendal de fracassos. Enquanto puxava umas fumaças rápidas a uma clandestina beata, eu disse:
– Estou a ficar velho, não tenho vida para isto. Vou dedicar-me a criar bichos-da-seda.
O Manuel concordou:
–Tens razão. A vida é um desporto violento, como disse o Éminguei. Se isto não melhora, se as coisas não tomam outro rumo, faço mas é a vontade à velha e vou para o seminário.
O Abílio, coitado, nem teve ânimo para dizer fosse o que fosse. Tinha as costas cheias de vergões negros. O mais simples movimento arrancava-lhe logo um esgar de dor.
Estávamos, praticamente, debaixo de prisão. Toda a cidade soubera o que se passara na feira e, por isso, a urbe em peso vigiava-nos, atenta aos nossos mais insignificantes movimentos. No liceu, os colegas, que de uma forma geral antipatizavam com os privilégios que a nossa condição de jornalistas nos conferia, cochichavam à nossa passagem, os mais alarves davam mesmo gargalhadas de escárnio. O Fernandes, com a sua inesgotável sandice, falava-nos de sobrolho erguido, dando a entender que era perigoso um instrumento ideológico como um jornal de parede de uma organização patriótica da juventude, lido por toda a escola, estar entregue a pessoas sem moral, como nós, que andavam pelas feiras a enganar ciganos. O malandro do Oliveira, esse então, era um verdadeiro mastim. A minha mãe, embora sempre carinhosa, ia esperar-me à saída, como se eu fosse uma menina do primeiro ano. Ao Manuel esperava-o uma velha criada de bigode hirsuto e ao Abílio (suprema humilhação!) um soldado da GNR.
A única coisa que não nos correu mal foi o ano escolar propriamente dito. Embora quase chumbados por faltas, passámos os três. Do quarto para o quinto ano. No início do novo ano lectivo, começámos a usar calças, casaco, camisa, gravata e sapatos bem engraxados aos domingos. Foi talvez influenciados por estes rituais de iniciação que deixámos de ler as aventuras do Sandokan.
(Continua)
quinta-feira, 3 de junho de 2010
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