domingo, 11 de julho de 2010

Bakunine por Bakunine (Raúl Iturra)

CARTA A ALPHONSE ESQUIROS

Cercanias de Marselha. 20 de Outubro de 1870. Instituto Internacional de História Social de Amesterdão.


Cidadão e Senhor,

Eu tive a honra de vos endereçar, por um de meus amigos de Marselha, uma brochura que publiquei sob o título: Lettres à un Français sur la crise actuelle.

Ela contém cartas escritas no mês de Agosto, bem antes da capitulação de Sedan. Mas o editor, meu amigo, que as encurtou singularmente, para não dizer que as castrou, acreditando sem dúvida que ainda não era o momento para dizer toda a verdade, achou por bem também datá-las de Setembro.

Estas cartas – endereçadas a um amigo, ao cidadão Gaspard Blanc de Lyon, um dos jovens mais devotados ao bem da França que encontrei, e que o Sr. Challemel-Lacour, comissário extraordinário, mantém na prisão sob a acusação ridícula e odiosa de ser um agente dos prussianos – vos provarão, espero, cidadão Esquiros, que eu também não sou nem o amigo, nem o partidário do rei da Prússia, nem de nenhum déspota do mundo.

O Sr. Challemel-Lacour e o Sr. Andrieux, Procurador da República em Lyon, ousaram levantar contra mim esta calúnia infame. Certo, não serei eu que me queixarei da vivacidade da polémica entre partidos que se combatem. Aliás, não teria o direito de fazê-lo, pois eu também, quando e tanto quanto eu pude, mostrei-me impiedoso pelos interesses, pelos homens e pela organização política e social da qual esses Senhores aparecem, hoje, como os defensores naturais, em detrimento do bem da França, e que em seu conjunto constituem a nefasta potencialidade actual da burguesia. Ataquei duramente os princípios e os, por assim dizer, direitos de meus adversários em política e em socialismo. Mas jamais atingi as pessoas, e sempre tiver horror à calúnia.

É um meio tão cómodo, não é verdade, o de lançar hoje esse epíteto de prussianos a todos os homens que têm a infelicidade de não poder dividir um entusiasmo encomendado por esses falsos salvadores da França, cujas inércia, incapacidade e impotência enfatuada, em si mesma, destroem a França.

Uma outra pessoa que não nós, cidadão Esquiros, teria podido me perguntar: em que isto vos pode interessar, a vós que sois estrangeiros? Ah! senhor, é preciso que eu vos prove que a causa da França tomou-se a do mundo; que a derrota e a decadência da França serão a derrota e a decadência da liberdade, de tudo o que é humano no mundo? Que o triunfo definitivo da ideia e da força da Prússia, militares e burocráticas, nobiliárias e despoticamente protestantes, será a maior infelicidade que possa atingir toda a Europa. Se a Prússia vence, isto acontecerá com a humanidade europeia pelo menos por cinquenta anos; para nós, velhos, só nos restará morrer. E lamentável! Eu deveria reconhecer que meu amigo, já falecido, Alexandre Herzen, teve razão, após as nefastas jornadas de Junho de 1848, – jornadas durante as quais a burguesia de Paris e da França erigiram o trono de Bonaparte sobre as ruínas das esperanças e de todas as aspirações legítimas do proletariado, - que ele teve razão ao proclamar que a Europa ocidental dali em diante estava morta, e que para a renovação, para a continuação da história, só restavam duas fontes: a América, de um lado, e, do outro, a barbárie oriental.

Advogado, não de vosso mundo burguês oficial, mundo que eu detesto e que desprezo de todo meu coração, mas da revolução ocidental, eu sempre defendi esta revolução contra ele.

Após ter sido um dos ardentes adeptos desta revolução, ele não acreditava mais, de forma alguma. Eu continuava a acreditar nela, apesar da catástrofe, apesar do crime cometido pela burguesia em Junho. Ele dizia que a Europa ocidental estava, a partir dali, petrificada e podre, que ela se tinha tornado temerosa e covarde, sem fé, sem paixão, sem energia criadora, como outrora o Baixo-Império. Eu concordei com ele em relação à vossa civilização burguesa, mas objectei-lhe que na Europa ocidental, abaixo da burguesia, havia um mundo bárbaro sui generis: o proletariado das cidades e os camponeses que, não tendo abusado e nem mesmo usado da vida, não tendo sido depravados nem sofisticados por esta civilização caduca, mas, ao contrário, continuando a ser moralizados sempre por um trabalho que, por mais oprimido e por mais escravo que seja, não é menos, por isso, uma fonte viva de inteligência e de força, estão ainda cheios de futuro; e que por consequência não havia necessidade de uma invasão da barbárie oriental para renovar o ocidente da Europa, tendo o ocidente em suas regiões subterrâneas uma barbárie própria que a renovaria na hora devida.

Herzen não acreditava em nada disso, e ele foi morto por seu cepticismo, muito mais que por sua doença. Eu, ao contrário, estava cheio de fé; eu fui socialista – revolucionário não somente na teoria, mas na prática; quer dizer que eu tive fé na realização da teoria socialista, e foi por causa disso mesmo que sobrevivi a ele. Eu fui e sou socialista, não somente porque o socialismo é a liberdade real, é a igualdade real e é a fraternidade real, e é a justiça humana e universal, - mas ainda por uma consideração de fisiologia social.

Eu sou socialista porque cheguei à conclusão de que todas as classes que constituíram, até aqui, por assim dizer, as grandes personagens, agentes e vivas, da tragédia histórica, estão mortas. A nobreza está morta; a burguesia está morta e podre. Ela prova isso muito bem actualmente. O que resta? Os camponeses e o proletariado das cidades. Somente eles podem salvar a Europa do militarismo e da burocracia prussianos, estes dois aliados e primos do coute de meu caro imperador de todas as Rússias.

O que eu vejo hoje na França me mergulha num estado próximo ao desespero. Eu começo a temer, com Herzen, que os camponeses e o proletariado, na França, na Europa, também estejam mortos. E então? Então a França está perdida, a Europa está perdida.

Mas, não! Durante minha curta presença em Lyon e nas cercanias de Marselha, eu vi, eu senti que o povo não estava morto. Ele possui todos os grandes instintos e todas as possantes energias de um grande povo; o que lhe falta é a organização e a justa direcção; não esta direcção e esta organização que lhe caem de cima, pela autoridade do Estado, seja recomendada por Sua Majestade imperial, Napoleão III, seja por Sua Majestade republicana, o senhor Gambetta; mas esta organização e esta direcção que se formam a partir de baixo, e que são a própria expressão da vida e da acção populares.

É evidente, cidadão Esquiros, que para vos endereçar semelhante carta, é preciso que eu tenha grande fé em vós. E sabeis por que tenho esta fé? Jamais tive a honra de vos encontrar, mas li vossos escritos e conheço vossa vida. Sei que jamais temestes ser um revolucionário consequente, que nunca vos desmentistes, e que jamais sacrificastes a causa do povo por considerações de classe, partido, ou por vaidades pessoais. Enfim, Senhor, fostes o único a propor, nesse infeliz Corpo Legislativo, após os desastres que destruíram o exército francês, e, permitais que eu vos diga, no meio da covardia e da estupidez manifestadas por todos vossos colegas da esquerda, - os mesmos que formam hoje o governo da Defesa Nacional, - o único meio que restava para salvar a França: o de provocar, por uma proclamação feita em nome do Corpo Legislativo, a organização espontânea de todas as comunas da França, fora de qualquer tutela administrativa e governamental do Estado. Vós quereis proclamar, numa palavra, a liquidação, ou mesmo a simples constatação da ruína total e da não existência do Estado. Vós teríeis colocado a França, por esta iniciativa mesmo, em estado de revolução. Eu sempre compreendi, e a esta hora deve ter-se tornado evidente para todo o mundo, que fora deste remédio heróico não pode haver salvação para a França. Os advogados que compõem vosso governo actual pensaram de outra forma. Privados de todos os meios que constituem a força de um Estado, eles quiseram – pobres inocentes! - Brincar de governo do Estado. Com este jogo eles paralisaram toda a França. Eles lhe proibiram o movimento e a acção espontânea, sob o pretexto ridículo, e, dadas as circunstâncias presentes, criminosos, os únicos que eles de representantes do Estado, devem ter o monopólio do pensamento, do movimento, da acção. Obcecados pelo temor de ver o Estado desmoronar e desmanchar-se em suas mãos, eles guardaram, para conservá-lo, toda a antiga administração bonapartista, militar, judiciária, comunal e civil; e forçaram sua confiança imbecil neles próprios, sua criminosa fatuidade pessoal até ao ponto de acreditar que, a partir dos momentos que estivessem no poder, os próprios bonapartistas, essas pessoas ligadas irrevogavelmente ao passado pela solidariedade do crime, se transformariam em patriotas e em republicanos. Para paliar este erro e para corrigir suas funestas consequências, eles enviaram, a todos os lugares, comissários extraordinários, prefeitos, subprefeitos, advogados gerais e procuradores da república, pálidos republicanos, bastardos de Danton, como eles; e todos estes pequenos advogados, todos estes arrogantes de luvas do republicanismo burguês, o que eles fizeram? Fizeram a única coisa que poderiam ter feito: aliaram-se em todos os lugares à reacção burguesa contra o povo; matando o movimento e a acção espontânea do povo, mataram toda a França. Agora a ilusão não é mais possível. Já faz quarenta e seis dias que a República existe: o que fizeram para salvar a França? Nada – e o prussiano continua a avançar.

Tal foi o pensamento, cidadão, e tais foram os sentimentos que presidiram à formação do Comité da Salvação da França, em Lyon, que ditaram sua proclamação, que levaram meus amigos a fazerem essa tentativa de 28 de Setembro, que fracassou, não temo em dizê-lo, para a infelicidade da França.

Vários dentre meus amigos, em cartas que endereçaram ao Progrès de Lyon, tiveram a fraqueza de negar o objectivo real desta manifestação fracassada. Eles erraram. Em tempos como o actual, no meio do qual vivemos, deve-se ter, mais do que em qualquer outra época, a coragem de dizer a verdade.

O objectivo era o seguinte: nós queríamos derrubar a municipalidade de Lyon,

Municipalidade evidentemente reaccionária, mas ainda mais incapaz e estúpida do que reaccionária, que paralisava e continua a paralisar qualquer organização real da defesa nacional em Lyon; derrubar, ao mesmo tempo, todos os poderes oficiais, destruir todos os restos desta administração imperial que continua a pesar sobre o povo, neutralizar Suas Majestades, os reis de Yvetot3, que pensam reinar e fazer alguma coisa de bom em Tours; e convocar a Convenção Nacional da Salvação da França. Numa palavra, nós queríamos realizar em Lyon o que vós mesmo, cidadão Esquiros, tentastes fazer através de vossa Liga do Midi, Liga que certamente teria sublevado o Midi e organizado sua defesa, se ela não tivesse sido paralisada por esses reis de Yvetot.

Ah, Senhor, os advogados do governo da Defesa Nacional são criminosos! Eles matam a França. Se os deixarmos fazer, eles a entregarão definitivamente aos prussianos!

É tempo que eu termine esta carta, já muito longa.

Genebra – 12 de Março de 1870. Biblioteca de Lyon.

Ilustração: Bakunine falando perante os membros da Associação Internacional de Trabalhadores no Congresso da Basileia em 1869.

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