Fernando Pereira Marques
1 - Com a conivência da esquerda socialista e social-democrata, de Terceiras Vias e semelhantes, Blair’s e Cª, a burocratização dos sindicatos e o eficaz sistema informativo-comunicacional de imbecilização dos povos, o capitalismo triunfante e ultraliberal, após um ciclo de lógica hiperconsumista e de predomínio da especulação financeira, acelerou a destruição do que resta do Estado-Providência, do modelo social construído sobre as ruínas e os massacres da II Guerra Mundial. Deste modo, e como era previsível, actualmente uma das causas da esquerda é defender esse modelo social, impedir a sua destruição completa. Evidentemente não como um ponto de chegada, mas como uma conquista de séculos de lutas que continua a ser um ponto de partida para formas mais humanas de organização política e social.
Permito-me assim transcrever uma passagem sobre o tema de um livro meu há tempos publicado: Esboço de um Programa para os Trabalhos das Novas Gerações (Campo das Letras, 2007)
2 - A imaginação fecunda dos gestores do sistema já conseguiu mesmo, prosseguindo a estratégia de desmantelamento do Estado-Providência, reprivatizar nalguns países o que o processo civilizacional e democratizador tinha tornado funções sociais e públicas, nas áreas da saúde, da segurança, da educação, da justiça. A doença, a dor, o sofrimento, o medo, a morte, a insegurança, a guerra, tudo é transaccionado e transaccionável. A fúria privatizadora de serviços de interesse geral atinge os transportes, o fornecimento de água e de electricidade, os correios, as cadeias, ou até as instituições educativas e militares; nada escapa a essa sanha que mesmo organismos internacionais, como o FMI, incentivam. Deste modo, corre-se o risco de retroceder à Idade Média e à venalidade dos cargos públicos, à desintegração do Estado em micro-poderes de tipo feudal, fomentadores de irracionalidade e de arbítrio .
A protecção dos mais pobres e mais desamparados - desempregados, idosos, crianças - passou a ser considerada excessivamente custosa e a precariedade tornou-se regra nas relações de trabalho. Porque, como se diz na novlíngua – parafraseando Orwell -do americanismo, o mundo mexe graças à dialéctica entre winners e losers, sem esquecer os survivers, categoria intermédia composta por aqueles que subsistem custe que custe e a qualquer preço.
O Estado democrático, submetido ao primado da Lei e com funcionários vinculados ao serviço público, vigiado e controlado pelos cidadãos no exercício dos seus direitos, liberdades e garantias, tendo à sua frente políticos legitimados pelo voto e exercendo mandatos transitórios, intervindo e agindo para estabelecer a racionalidade e a justiça, corresponde a uma etapa da evolução histórica e dela não se deve regredir. Isto não significa, evidentemente, que, na sua diversidade nacional, o Estado seja insusceptível de reforma e de permanente melhoramento, tendo em conta os anquilosamentos burocráticos e as derrapagens autoritárias, a intoxicação mediática e espectacular que o oculta, e outros mecanismos de condicionamento e de manipulação das liberdades que visam impor os interesses parcelares por sobre o interesse geral.
Porque o Estado, enquanto facto histórico-social e instrumento de dominação, não encarna em si o Bem ou a Razão, é, simplesmente, a expressão burocraticamente cristalizada de relações de forças. Nesta medida, não obstante diferenças, desigualdades e conflitos de interesses persistirem na sociedade, o processo civilizacional e democratizador criou instrumentos que permitem intervir através do Estado, disciplinando e regulando, para que o bem comum seja o objectivo norteador da acção política.
Aumentar a capacidade de auto-governo e de autonomia dos cidadãos é um dos objectivos da ideia exigente e dinâmica de democracia e das velhas utopias nas quais o socialismo se inspira. Mas isto não se confunde, naturalmente, com aquilo que o ultraliberalismo mercantil gera, ou seja, a transformação das sociedades em campos de batalha onde impera a lei do mais forte, da ganância e do dinheiro. A concepção de poder e de liberdade dos serventuários do capitalismo triunfante, reduz a política à mera gestão dos negócios e esmaga a sociedade sob a economia.
Na Grã-Bretanha, durante os governos da senhora Thachter, o desinvestimento do Estado e a política de privatizações atingiram tal dimensão que, num país orgulhoso, legitimamente, do seu sistema de segurança social, construído por governos de direita e de esquerda - em particular após as reformas Beveridge levadas a cabo pelo governo Atlee, ainda antes do fim da II Guerra Mundial -, as desigualdades no acesso aos cuidados de saúde agravaram-se de forma dramática. Tal situação obrigaria, a partir de 2000, a um drástico aumento das despesas públicas, nesse e noutros sectores. Mas o New Labour de Tony Blair prosseguiria, mesmo se mais moderadamente, esse desinvestimento e essa política. É exemplo disto o que se passou com os caminhos de ferro. Alterada a coerência funcional da rede pela sua distribuição por várias sociedades privadas, enfraqueceu-se a eficácia e a segurança, sucedendo-se os acidentes e outras disfunções.
No plano militar, o processo de mercenarização da guerra, particularmente avançado no modo de destruição em que se está tornar o sistema norte-americano, é outra das manifestações do fenómeno mais amplo de mercantilização do mundo, e observa-se a dois níveis: na destruição do modelo republicano de exército assente na conscrição, até há pouco tempo predominante nas forças armadas europeias; e na privatização de diversas estruturas, dispositivos, tarefas e acções militares, retirando ao Estado o monopólio do uso legítimo da força – operação esta a que se chama outsourcing.
Nos EUA, de forma a permitir a continuação da extensa presença militar do país na cena mundial, racionalizando custos e reduzindo pessoal burocrático , empresas privadas ( private military companies, PMC) treinam tropas, mantêm e protegem bases no estrangeiro, recolhem informações, transportam equipamentos, armas e munições, possuem aviões e pilotos. Por exemplo, o Congresso tinha fixado em 200.000 o número de homens a deslocar para a Bósnia, mas contornando esta restrição, o Pentágono recrutou cerca de dois mil mercenários; prática tornada corrente noutros pontos sensíveis do planeta onde existem forças norte-americanas. O mesmo se passara na primeira guerra do Golfo e se veio a passar na segunda. No Iraque, em finais de 2003, eram já 20.000 os mercenários em acção (mais do que as tropas inglesas) e umas vinte cinco as PMC em actividade nesse teatro de operações, maioritariamente americanas e inglesas. Mas também as há no Afeganistão, na Colômbia e em dezenas de outros países.
Um estudo realizado pela International Consortium of Investigative Journalists, identificou umas noventa empresas actuando neste sector ainda sujeito a muita ocultação. As principais são norte-americanas, inglesas e sul-africanas, como a Military Professionals Resources Inc. (MPRI) , a DynCorp, a Wakenhut, a Vinnell (filial da TRW), a Logicon, a SAIC, a Kellogg Brown & Root (filial da Halliburton dirigida no passado, recorde-se, por Richard Cheney). Estima-se em 100 mil milhões de dólares (92,5 mil milhões de euros) o volume de negócios deste novo sector económico , tornando-se cada vez mais evidente que a mercenarização não permite uma real redução nas despesas públicas com a defesa, mas antes contribui para reforçar o peso e o poder do complexo militar-industrial no sistema mercantil norte-americano e até mundial.
A DynCorp tem um ramo britânico que ganhou um contrato de 300 milhões de libras relativo ao fornecimento de transportes (trucks) e de condutores de tanques a enviar para o campo de batalha. A Halliburton possui subsidiárias, como a Devonport Management Ltd., que ficaria encarregada da construção de docas destinadas a submarinos nucleares no valor de 505 milhões de libras, e a Global Risk International, que forneceu os Gurkhas (guerreiros nepaleses legendários) encarregados da protecção de Paul Bremer, o proconsul norte-americano em Bagdad durante a fase inicial da ocupação. Existem também PMC’s em Israel, em França, na Dinamarca e na Alemanha. Neste último país, uma sociedade mista, a GEBB (Gesellschaft fur Entwiklung-Betriebs und Bedarfsschaffung), foi criada para dar apoio a unidades, gerir infra-estruturas - como depósitos de munições - , alugar veículos e proceder a transportes.
Confunde-se, mistificadoramente, a desregulação que convém ao ultraliberalismo antisocial, com o risco criativo e a liberdade contratual. O ultraliberalismo corrói a coesão e rompe os laços sociais, impondo práticas económicas e de competição individual ferozes, que não obedecem a regras morais e legais ou as secundarizam . Por isso, hiperbolizando essa desregulação que da economia se estende à sociedade global, questionam-se as funções racionalizadoras, reguladoras e estruturadoras do Estado-Providência.
Este modelo de Estado, constituiu um progresso, ao permitir reduzir as desigualdades e minimizar os custos sociais e humanos inerentes ao funcionamento do capitalismo. Perante a ofensiva regressiva do primarismo ultraliberal, cabe ao reformismo socialista, defender, aperfeiçoar e adaptar às novas realidades tal modelo, aprofundar as suas capacidades e virtualidades, no sentido de o tornar ponto de partida para formas qualitativamente superiores de organização social e económica.
terça-feira, 20 de julho de 2010
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Texto muito bom, muito esclarecedor sobre as malhas que o neoliberalismo está tecendo e nas quais vemos muita boa gente enredar-se. Porque, como dizes, o Estado-Providência não era uma meta, mas sim uma plataforma de partida. Substituir esse conceito pela doutrina do «cada um que se amanhe», não é um passo em frente. É perder tudo aquilo por que se luta há quase duzentos anos.
ResponderEliminarEu estou totalmente de acordo com este texto tão completo, apesar do texto que publico amanhã,é minha convicção que o Estado Providência é um avanço civilizacional, que não deve ser posto em causa! Mas os caminhos para o defender podem não ser os mesmos.
ResponderEliminarCaro Fernando Pereira Marques, sê bem-vindo ao «estrolabio».
ResponderEliminarQuanto ao Estado Providência, agora com a crise, vêem os liberais e a direita tradicional uma oportunidade para acabar com ele, preocupados em recuperar a especulação financeira e «off-shores», principais responsáveis pela dita crise; alguns dos seus agentes já voltaram a ter os chorudos prémios de «produtividade» creditados nas suas contas e nestes ninguém toca, apenas o Obama parece querer fazer alguma coisa contra eles, mas não sei se vai ter poder para isso.
Nas lutas desenvolvidas nos últimos 150 anos, onde o socialismo se forjou, o estado social foi sendo conquistado e, agora, vemos os chamados partidos socialistas, quando no poder, a legislarem contra esse mesmo estado social, de forma empacotada, mas sempre a justificarem-se como sendo a única forma de não permitir o regresso da direita ao poder. Na oposição mudam de registo, ou mesmo quando sabem que a sua perda do poder se aproxima, como agora acontece em Portugal.
A direita, agora com um candidato que se diz liberal, candidato este formado pelo patrão mor (adivinham quem é? Quem ficou zangado com a utilização das «acções douradas»? E por que razão terá o Governo utilizado este direito, se é que o é?), aproveita a crise para propor a alteração do regime, sendo minha convicção que esta proposta vai ser usada para chantagear na discussão do próximo orçamento. Veremos se o PS vai ser capaz de resistir.
Esta discussão tem de continuar, tem de se aprofundar.
E, ágora para ti Luís Moreira, haverá assim tantos caminhos para defender o «estado social»?
Deixo agora apenas estas provocações aos amigos bloguistas!