Carlos Loures
Ontem, 18 de Julho, passaram 74 anos sobre a eclosão da Guerra Civil de Espanha. Estava-se em 1936 . O conflito só terminaria quase três anos depois, em 1 de Abril de 1939. Morreu cerca de meio milhão de pessoas. 74 anos na escala humana anos são uma vida, são muito tempo. Porém, à escala da História, não são nada. A Guerra Civil de Espanha foi ontem. Aproveito para uma reflexão sobre quanto, desde ontem para hoje, a direita ( tal como a esquerda) mudou. Em Espanha e não só.
Como muitos de vós saberão melhor do que eu, em 16 de Fevereiro de 1936, em eleições livres e democráticas, uma frente de esquerda, resultante da aliança dos anarquistas com os partidos republicanos, a chamada Frente Popular venceu, proclamando-se a II República (a I República vigorara entre 11 de Fevereiro de 1873 e 29 de Dezembro de 1874). A direita militar espanhola, as classes possidentes, a Igreja católica, suportaram mal o clima de controvérsia dos primeiros passos do jovem regime. Clima que adensaram com provocações e actos insensatos (que os houve de ambos os lados), mas vitimizando-se sempre a direita, cometendo dislates e crimes, mas comportando-se com o tom pudicamente ofendido de uma virgem num bordel.
Em suma, todas as forças reaccionárias, aproveitando como pretexto os erros das esquerdas, se mancomunaram para derrubar a República. Os pormenores históricos estão ao dispor, em livros, em filmes, não os vou repetir. Direi só que os generais golpistas de 18 de Julho de 1936 deram corpo a tudo o que de mais sinistro existia no substrato daquilo a que se chama «espanholidade», crisol onde se misturam sentimentos e interesses contraditórios, nacionalidades sufocadas, quezílias seculares mal resolvidas. Três anos e quase 500 mil mortos depois, a guerra terminou com a vitória da direita. As trevas da repressão abateram-se sobre Espanha – foram quase quarenta anos de ditadura de uma direita reaccionária, ressabiada, raivosa. Estúpida como só as ditaduras sabem ser.
Porque a maior contradição de Espanha é a sua existência, a forma brutal como amalgamou povos com identidade própria, com cultura e história, fundindo tudo para dar corpo à utopia concebida um dia, há mais de cinco séculos, por uma rainha castelhana e por um rei aragonês que sonharam unificar toda a Península Hispânica. A República, ainda que timidamente, ensaiava os primeiros passos no sentido de criar uma federação de estados autónomos. Na Galiza, homens como Castelão, Carvalho Calero, Alexandre Bóveda, concebiam um anteprojecto de Estatuto de Autonomia para a Galiza, em cujo artigo primeiro se declarava – “A Galiza é um Estado livre dentro da República Federal Espanhola”.
Na Catalunha, o governo republicano reconheceu a Comunidade Autónoma da Catalunha, aprovando, em 1932, o seu Estatuto. Francesc Macià foi eleito Presidente da Generalitat,. A vitória de Franco varreu todas estas “veleidades” e impôs uma España una. Curioso é que a democracia, que formalmente regressou em 1975, tenha conservado com unhas e dentes o centralismo imposto pelo franquismo, concedendo alguma autonomia, mas recusando liminarmente que catalão, galego ou basco tenham paridade com o castelhano. Viu-se, há dias a rejeição parlamentar do Estatuto da Catalunha. A democracia, esta coisa a que chamamos democracia, repudia o fascismo, mas aproveita-lhe os sobejos.
Porque os objectivos continuam a ser os mesmos – conservação de valores considerados intemporais, tais como os privilégios de classe, prevalência da religião como cimento dum edifício mais torto do que a torre de Pisa – o estilo mudou. Um derradeiro assomo deste estilo arruaceiro no estado espanhol foi o assalto golpista ao Congresso, em 23 de Fevereiro de 1981, por forças da Guarda Civil comandadas pelo tenente-coronel Tejero. Rajadas de pistola-metralhadora e gritos de «Quieto todo el mundo! Al suelo! Al suelo!». Don Juan Carlos fez a sua rábula de democrata (coisa que podia e deveria ter feito dez ou vinte anos antes, durante o reinado de Franco). A própria direita condenou o acto e, pronto, tudo acabou em bem.
Hoje as coisas não são tão visíveis, tão claras como eram há setenta anos. A direita descobriu o seu nicho ecológico no seio da democracia. Não sei se já repararam que todos, ou quase todos, os partidos de direita fazem questão de incluir na sua sigla a palavra «democrata», «democracia»… A nova direita adaptou-se à democracia; mais – não saberia já viver noutro sistema. Mas…
A ideia da extinção dos conceitos de direita e de esquerda já não se justificarem no pós-modernismo é uma ideia de direita. Porque a direita actual tem vergonha da direita de ontem, tal como aqueles filhos licenciados que se envergonham dos pais analfabetos os quais, em todo o caso, lhes punham todos os dias a comidinha na mesa. Mussolini, Hitler, Salazar, Franco, Auschwitz, Tarrafal, Guernica, Gestapo, Pide, … que nojo!».
A designação até pode vir a cair em desuso. O que esse desuso não extinguirá é a realidade subjacente à classificação. E aqui sou forçado a emitir uma definição pessoal. Para mim, a distinção entre direita e esquerda pressupõe uma clivagem, entre os que querem conservar valores que implicam a manutenção das desigualdades sociais e os que, sem se importarem com esses valores, querem transformar a sociedade e promover uma igualdade absoluta dos cidadãos perante a lei, bem como o acesso de todos, de modo igual, aos bens que a comunidade, no seu conjunto, puder produzir. Quando a direita aceitar isto sem reservas, deixará de ser direita e, então sim, deixará de se justificar a distinção.
A Guerra Civil de Espanha começou faz hoje 74 anos. Foi há muito tempo. Foi ainda ontem.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
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