sábado, 17 de julho de 2010

Índios e cowboys

Carlos Loures



Filmes como este, que podemos ver na páina seguinte e que víamos entusiasmados, por vezes nos cinemas de sessões contínuas, levavam os da minha geração a eleger como brincadeira favorita as lutas entre índios e cowboys (cóbois, no nosso inglês simplificado). Nascido no centro de Lisboa, não podia brincar na rua. Mas nas férias grandes desforrava-me. Numa vila de praia da margem Sul, hoje transformada num caos urbanístico, mas na altura pacata e tranquila, reunia-me a um grupo de amigos certos, todas as tardes, depois do almoço, antes de uma última ida à praia, quando o sol já não «fizesse mal». Dividíamo-nos em dois grupos, os maus e os bons, os índios e os cóbois. Não havia lugares fixos, a divisão era aleatória. Mas quem se atrasasse na chegada já nem tinha direito a escolher. Era assim e pronto. Ninguém discutia as regras.

Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo e político italiano, perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, dizia na sua obra Os Intelectuais e a Organização da Cultura: «Cada grupo social essencial» (…) «surgindo na história a partir da estrutura económica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenvolveu até aos nossos dias – categorias intelectuais pré-existentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas».

Ao recordar estas palavras de Gramsci, sou levado a reflectir sobre o facto de a realidade histórica dos últimos dois séculos nos permitir verificar que são oriundos da burguesia quando não mesmo da aristocracia, os intelectuais que surgem à superfície das grandes e pequenas perturbações sociais e que construíram, não só os suportes teóricos do sistema capitalista, como também os pressupostos ideológicos de quantas revoluções se produziram.

A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que veio criar um novo modo de produção – o que, pode dizer-se, não acontecia desde o Neolítico – provocou o aparecimento de uma estrutura intelectual adequada, do mesmo modo que a aristocracia fundiária, no sistema feudal, criou a sua própria categoria intelectual – a dos sacerdotes. Estes monopolizaram, durante um longo período da história, a ideologia religiosa que, para todos os efeitos, constituía a ciência da época. Em contrapartida, poder-se-ia afirmar que a classe operária, nasceu, sobreviveu e, provavelmente, extinguir-se-á sem ter organizado (ainda que a partir de categorias intelectuais «pré-existentes» uma intelectualidade própria, acabando o marxismo, numa análise superficial, fria e pragmática, por surgir como uma ruptura interna na superstrutura da burguesia, não ultrapassando na prática a concepção hegeliana que atribuía aos intelectuais o papel de «aristocracia do Estado».

Esboça-se um quadro de luta de classes em que, a nível superestrutural, um dos contendores estaria numa total dependência dos quadros formados pelo adversário, aparecendo a luta, no campo das ideias, como uma dissensão no campo de burguesia – a clivagem entre intelectuais «burgueses» e intelectuais «proletários» seria determinada por um jogo de opções pessoais baseado na pressão moral que a natureza cruel e desumana da exploração sempre tem exercido sobre camadas sensíveis da classe dominante, nomeadamente entre a juventude. O campo revolucionário, nessa luta que, embora tão anunciada nunca chegou a travar-se, dependeria das deserções que essa pressão ontológica provocasse.

Não falarei aqui do papel desempenhado nessas deserções do campo burguês motivadas por ilusões românticas e a esperança no advento de uma sociedade justa. Não falarei também de apressadas «opções de classe» feitas em ordem a objectivos obscuros de oportunismo, carreirismo, servidas por consabidos artifícios de demagogia. Desde o século XIX até ao século XX, organizações operárias fizeram esforços no sentido de criar estruturas culturais autónomas do tipo das universidades livres. Porém, salvo uma ou outra excepção, todas elas desembocaram em arremedos do ensino burguês.

No fundo, toda esta problemática radica num ponto – o socialismo não criou um modo de produção alternativo ao do capitalismo. Procurou pôr o modo de produção capitalista ao serviço do proletariado. Porém, tal como o carro não consegue puxar os bois, é o modo de produção que determina a estrutura cultural e não o contrário. Entrou-se num labirinto sem saída. Melhor, num labirinto cuja única saída deita para o depósito das revoluções abortadas. O «socialismo real» tinha falido muito antes da queda do muro de Berlim. Quando na União Soviética se chamou stakanovismo à mesma coisa a que os capitalistas chamavam taylorismo, a revolução acabara já. Porque o problema não era uma questão de nomenclatura. Nessa altura, em que os operários se emulavam para ver quem ganhava o título de «trabalhador do mês», nascera uma nova forma de exploração – o capitalismo de Estado, com a economia posta ao serviço de uma nova classe dominante. As pessoas mudaram, a exploração capitalista manteve-se. A bem dizer, não houve revolução.
*
Nesta era pós-industrial em que vivemos, observando a classe política que temos em Portugal, verifico que ainda há muita gente do «meu tempo». Na grande vaga de prisões que se verificou em meados dos anos 60 – o controleiro do sector universitário do Partido Comunista deu de mão-beijada à PIDE toda a estrutura do sector, nomes, pseudónimos, moradas, ligações – tudo. Ao mesmo tempo, um acidente com uma bomba artesanal desencadeou a prisão de muita gente da Frente de Acção Popular, um movimento proveniente de uma cisão no PCP. As prisões regurgitavam de jovens estudantes. Naquela altura, há mais de quarenta anos, estavam concentrados em duas organizações de esquerda (muitos mais no PCP). Eram jovens da classe média na sua generalidade, «filhos da burguesia», usando o linguarejar politiqueiro da época.

No começo dos anos 70, tinham começado a constituir-se outras formações políticas - a LUAR, as BR, o MRPP e, em 1973, a ASP, que daria lugar ao PS. No seio do partido único, a ANP, nascia uma ala liberal. O leque político que durante as décadas anteriores se resumira ao PCP, aos republicanos históricos (que só se organizavam em vésperas de eleições) e à Causa Monárquica, diversificava-se. Muitos dos militantes destas organizações, geralmente estudantes, provinham da geração seguinte à minha. Porém, os dos anos 60, formados na sua grande maioria no PCP, espalharam-se pelos novos movimentos (alguns em lugares de liderança) nomeadamente pelo PS, um ou outro pelo PSD. Não digo nomes, mas quem viveu aqueles tempos, sabe que foi como digo. Ministros e secretários de Estado do PS, foram e são, gente desse tempo, provenientes das hostes do PC.

Onde quero chegar é à conclusão de que, tal como nos jogos infantis de índios e cóbois, a escolha do campo político em que se actua, não sendo aleatória por corresponder, na melhor das hipóteses, a convicções políticas (há casos em que corresponde a interesses da mais variada espécie, mas não vou por aí), nada tem a ver com a chamada origem de classe. Toda a gente, da extrema-esquerda mais extra parlamentar à direita mais conservadora, pertence, grosso modo, à mesma classe, bebeu a sua formação nas mesmas fontes. Assumindo uns, em diversos graus, o papel de defensores da classe a que pertencem e outros, em diversos graus também, o de revolucionários.

Não explicará esta circunstância a falência sucessiva de quantas experiências de derrube da sociedade burguesa que têm sido empreendidas? Através dos intelectuais, dos quadros herdados, como sapatos de defunto, do capitalismo e introduzidos, mercê das tais opções de classe, sub-repticiamente no cerne do tecido revolucionário, a burguesia ressurge, mais cedo ou mais tarde, metamorfoseada em casta dirigente proletária, como erva daninha agarrada às estruturas de Estado, revestida da sacrossanta autoridade das altas hierarquias do Partido, montada solidamente no cavalo do poder. Cóbois disfarçados de índios. Ou vice-versa, se preferirem.

O jogo está viciado. Mas ninguém discute as regras.

6 comentários:

  1. Carlos Loures, parabéns por este texto. Abraço.
    C.Godinho

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  2. E, por vezes, um pouco cobois, um pouco índios. Discutir as regras? Já não sei.
    Como? Onde? Porquê? - ensinaram-me a intgerrogar. O porquê não tenho dúvidas. Já o como e o onde...

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  3. É um belo texto em que fazes exorcismo político, na verdade o grande problema do socialismo é não ser capaz de produzir bens e serviços e, sem isso, não há repartição justa. Porque se um país enriquecer no seu conjunto ( produzir riqueza) não há mal que alguns levem mais, porque todos ganham.Se uma sociedade tiver "elevadores" sociais e oportunidades iguais para todos ,não há mal que as pessoas sejam diferentes e alcancem níveis diferentes. É bom haver diferenças desde que todos tenham um mínimo digno.O que não é bom é o que já experimentamos. Um sistema ém que todos vivem mal e outro sistema em que as diferenças envergonham.Os sistemas são organizações vivas, que se renovam, encontram forças e energia dentro de si próprias para não perecerem.Tu já percebeste isso e indignas-te, porque no essencial este sistema é injusto!Olhas para trás e percebes que o capitalismo se autoregenera.É tambem por isso (já perdi a capacidade de sonhar, de creditar em utopias, coisa que tu, não perdeste) que sou reformista. Olho em volto e quero o melhor, o que existe, o que melhor assegura níveis de vida dignos à maioria da população.
    PS: só tu é que consegues por-me a filosofar...

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  4. "No fundo, toda esta problemática radica num ponto – o socialismo .... Procurou pôr o modo de produção capitalista ao serviço do proletariado." - fica para mim como a palavra-chave deste belo texto!
    Um dia destes dei comigo também a pensar como falha o comunismo quando esquece o individuo, não se sabendo ao certo do que é composto o colectivo. Obrigada, Carlos.

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  5. A falência do chamado «socialismo real» foi, quanto a mim, o não ter conseguido criar uma nova mentalidade, um «ser humano novo», por assim dizer. A política dos «estímulos morais», substituindo os «estímulos materiais», atribuindo medalhas ou elegendo o «operário do mês» - a chamada «emulação socialista» - não funcionou. Era preciso que, desde a infância se tivesse conseguido inculcar a filosofia do «ser», substituindo a do «ter», que impera no mundo capitalista e à luz do qual o Luís Moreira tem razão - no modelo de sociedade em que vivemos, se «tanto faz», as pessoas não têm estímulo para trabalhar, para aprender: ocupada com o «ter» (ou com o «não ter»), esquecem-se, não sabem «ser».

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  6. Claro, que a solução é o "homem novo" que se interessa pelo outro, mas isso é obra inacabada e irá até ao fim dos tempos.

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