domingo, 18 de julho de 2010

Materialismo e Espiritualismo

Adão Cruz

Conheço Jean-Pierre Changeux desde a década de oitenta, não pessoalmente, embora tenha assistido a uma conferência sua, nessas alturas, em Paris, salvo erro. Mas conheço-o através de alguns dos seus livros, como “Homem Neuronal” de 1980, e “Razão e Prazer”, livros que li e reli. Muita vontade tenho de ler outras obras suas como “Fundamentos naturais da ética”, “A verdade e o cérebro”, “O que nos faz pensar”, etc., mas não consigo a benevolência do tempo. Hei-de conseguir.

“Homem Neuronal foi, na altura, um best seller, muito contestado e muito controverso nos meios conservadores. Hoje, felizmente, os tempos são outros, e todas as mentalidades abertas se deliciam com os maravilhosos resultados da investigação neurobiológica e com o manancial de descobertas no campo das Neurociências.

Jean-Pierre Changeux é professor no Collège de France, e no Instituto Pasteur, onde dirigiu, desde 1967, um laboratório de Neurobiologia Molecular. As suas principais contribuições e descobertas no decurso dos últimos 37 anos estão centradas no tema geral dos mecanismos celulares e moleculares de reconhecimento e transdução de sinal, também conhecido como mecanismo receptor, principalmente no sistema nervoso.

Na sequência dos meus dois artigos anteriores sobre Materialismo e Espiritualismo, atrevo-me a escrever um terceiro. Porquê? Porque Jean-Pierre Changeux esteve há poucos dias em Lisboa, na Gulbenkian, e deu uma entrevista a Ana Gerschenfeld, que veio no “Público” do dia 13 deste mês. Aliás, foi também Ana Gerschenfeld quem entrevistou Tom Insel há uns meses atrás.

E porque é que Jean-Pierre Changeux me levou a escrever estas linhas? Porque a sua entrevista é, por assim dizer, uma espécie de cereja no modesto bolo dos meus artigos anteriores, cozinhado no forno do meu pensamento.

Este grande cientista da França e do mundo diz taxativamente que quanto melhor for o conhecimento do nosso cérebro humano, através das neurociências, maior será a nossa abertura em relação à espécie humana. E diz mais uma verdade, que a mim me parece irreversível e entusiasmante: já lá vão os tempos em que estas coisas eram um anátema, afirmando que é possível construir uma neurociência da pessoa humana global. O sentido moral e a espiritualidade são hoje, incontestavelmente, objecto biológico das neurociências, em razão de uma longa evolução. Por volta dos anos setenta, os progressos da biologia molecular permitiram uma primeira revolução fantástica, ao fazer sentir a necessidade de juntar áreas de estudo tão diversas como psicologia, sociologia, anatomia cerebral, fisiologia cerebral, farmacologia, genética etc.

A fisiologia cerebral começou a enraizar-se de tal modo na biologia molecular, que só assim foi possível começar a relacionar os comportamentos com estados fisiológicos de conjuntos neuronais. Através das novas tecnologias começou-se a perceber que a relação entre a actividade dos conjuntos neuronais do nosso cérebro e os estados psicológicos era um facto dificilmente contestável. Já não estamos no domínio do discurso teórico quando dizemos que as relações das neurociências com a ética, a estética, a moral e a epistemologia, não pertencem ao domínio da filosofia, sem demérito desta, mas sim aos intermináveis horizontes da experimentação e da procura de dados objectivos.

Muito mais poderíamos dizer à volta do que em mim criou a leitura desta entrevista de Jean-Pierre Changeux, se não corrêssemos o risco de alongar este artigo e torná-lo fastidioso. Fiquemos apenas com algumas conclusões:

A chamada epigénese, isto é, aquilo que se adquire e que se estrutura para além do que é genético, através do ambiente familiar, escolar, social, cultural e religioso vai criar na nossa organização neuronal aquilo que podemos designar por circuitos culturais. Aprendizagens que criam marcas mais ou menos profundas, mais ou menos indeléveis. Estas marcas culturais cerebrais, segundo Changeux, são muito pouco reversíveis. As bases neuronais destas diferenças culturais apenas serão reversíveis, se o forem, na geração seguinte, através da educação. Se formos capazes de entender a educação, agora digo eu, não como a construção de esquemas cerebrais irracionais, mas como processo de higiene mental do ser humano na sua mais nobre conquista, a liberdade. É por isso que é muito importante que a educação seja laica, diz novamente Changeux, permitindo a cada um ter os seus sistemas linguísticos e de crenças.

Termino, lembrando que todo o proselitismo é inaceitável, como é inaceitável chamar prosélita à magnífica função da ciência, o caminho mais racional do conhecimento para a abertura da mentalidade humana e para a conquista da verdade.

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