sexta-feira, 2 de julho de 2010

Novas Viagens na Minha Terra - 36


Manuela Degerine

Capítulo XXXVI

Inquietude

No dia 1 de Maio volto a Tomar. A viagem é mais demorada do que eu previa: por causa das obras na linha, há transbordo para autocarros. Chego a casa às onze da noite e só então começo a preparar as bagagens para o Caminho de Santiago…

Planeava partir com a mochila das primeiras etapas, logo uma observação rápida me obriga a desistir: uma das anilhas parece prestes a soltar-se. Mais uma… Impõe-se por isso levar a outra, mais pesada, mais desconfortável, mais malcheirosa, mesmo no primeiro dia, por absorver a transpiração – mas mais resistente. Desta vez quero ir tão longe quanto puder. Portanto, de preferência: até Santiago de Compostela.


Ainda hesito se posso incluir isto ou aquilo na bagagem. Opto, para além do que terei vestido, por três camisolas de algodão e uma de fibra especial para as caminhadas que, diz o fabricante, é leve, quente e deixa o corpo respirar, dois pares de calças, dois de peúgas, dois sutiãs e duas cuecas. Crocs para o duche. Uma toalha pequena. O saco-cama dos quinze graus (estamos em Maio). Um saco-lençol de linho, para não dormir em contacto com fibras artificiais; e, se o tempo estiver quente, dormirei com ele apenas. Protecção para a chuva: capa, blusão, polainas. O mínimo de medicamentos e produtos de higiene. O meu diário. Telemóvel, máquina fotográfica e seus respectivos carregadores de bateria. Um canivete. E um saco de produtos alimentares que não encontrarei nas mercearias. Ou seja, leitor trocista... Quase não me atrevo a escrevê-lo. Bem... Como diria o meu admirado A., verdade e mais verdade, não é? Pois, então: trinta e duas barras com proteínas, vitaminas e minerais. Duas para cada etapa; não contando a de hoje. Mais dez doses de (excelente) há. Mais três tabletes de chocolate preto – o meu declarado vício. (Não levo outras por saber que, com o calor, derreterá...) Mais uma sandes para a viagem, uma maçã, uma banana... E meio litro de água. Prefiro nem saber com exactidão o peso que levo: a mochila parece-me absurdamente pesada.

Medito onde convém arrumar as oito odoríferas rodelas de chouriço destinadas aos cães raivosos. Não pode ser na mochila pois, se for atacada por alguma fera, não terei tempo para a abrir antes de ser devorada, só pode por conseguinte ser na bolsa que trago à cintura com o roteiro, o protector solar, as bananas, a garrafa de água e o chocolate quotidiano. Pois... Vou atravessar Portugal perfumada com chouriço. A ideia não me encanta, prefiro o almíscar – mas faço do chouriço coração. Digamos... Eu cá me entendo! Divido as oito rodelas em duas doses de três (destinadas aos cães grandes) e uma de duas (suficiente para um cão pequeno), embalo-as em sacos de plástico finos para, em situação de perigo e urgência, os rasgar e lançar o pitéu ao monstro. Mesmo através da bolsa e do plástico sinto o cheiro do chouriço. Não correrei o risco de juntar todos os cães do distrito atrás de mim?...

Deito-me tarde. Passa das duas horas e levanto-me às seis. Não adormeço logo... Sinto-me pela primeira vez incerta quanto ao meu projecto – e quase inquieta. Não será melhor ficar em casa? Aproveitar estes quinze dias para ler e escrever? Atravessar Portugal a pé representará na realidade uma loucura?

Continuo a achar que não. Fui duas vezes atacada e roubada, a primeira a quinhentos metros de casa e a outra à porta da minha mãe. Não me parece que a clausura constitua solução para a violência urbana; aliás, pelo que oiço, até dentro de casa corremos o risco de ser agredidos. Por isso tomo as possíveis precauções para limitar os riscos – mas quero continuar a viver. E quero conhecer a minha terra para além dos jornais, museus, auto-estradas, aeroportos e supermercados. A caminhada dá-me um ponto de vista que enriquece e estrutura os outros: esta diferença vale os riscos e canseiras.

Por diferentes razões, alheias ao Caminho de Santiago, que me vão atrasando, só parto às 10 horas. Parece-me aberrante ir de comboio para Coimbra e, de lá, de camioneta para Condeixa, com o objectivo de em seguida fazer a pé o trajecto inverso, entre Condeixa e Coimbra. Por isso fico em Soure. Isto é: a 14 quilómetros de Condeixa. Catorze mais dezoito dá trinta e dois quilómetros: excessivo para um primeiro dia de caminhada.

Os meus pés não vêm preparados para tal jornada. Do mês de Novembro para cá, caminhei com frequência, porém em trajectos curtos. E não voltei a calçar as botas. Trouxe, mal por mal, estas, as antigas, as que já percorreram centenas de quilómetros – as que no entanto, em Novembro, me fizeram bolhas. Quantos quilómetros chegarei desta vez a caminhar?

Mudo para o comboio da linha do Norte na Lamarosa: uma estação no meio dos malmequeres. Saio para ver o que há para além deste delírio amarelo. Meia dúzia de casas, se tanto, uma fonte, dois tanques, um homem, um cão... Lembra-me o poema Aldeia de Manuel de Fonseca: Nove casas, / duas ruas, / ao meio das ruas / um largo, / ao meio do largo/ um poço de água fria. Imobilizo-me no silêncio do poema.

Uma turista russa, com uma mala rolante, reconduz-me à estação. Também se encontra ali pendurada durante uma hora: vai para Tomar, vem de Coimbra, não gostou da cidade, é tudo a subir, há a universidade, duas igrejas, muitos prédios, nada de especial. Como é Tomar? Explico que em Tomar tudo é especial. E os prédios situam-se do outro lado do Nabão: podemos ignorá-los. Se quisermos. Onde vou? A Soure, antes de Coimbra, de onde espero prosseguir o caminho para Santiago. A pé?! A senhora tem bigode, o que não me incomoda, mas sublinha o espanto. Fita-me entre incrédula – não percebeu? estarei a brincar? que humor lusitano é este? – e admirativa. Então a pé? Mesmo? Sempre a pé? Para ela já chegam os comboios e camionetas. Esperas, atrasos, confusões, mudanças. Cansaço. Desventuras. Só fala inglês. E russo. De facto o comboio dela tem dez minutos de atraso. Enquanto conversamos a senhora vai atacando primeira sanduíche, segunda sanduíche, uma maçã, uma laranja, um pacote de bolos... Avanço, para a consolar, que Tomar tem bons restaurantes, com boas doses e bons produtos, recomendo dois e até os marco no mapa que ela traz.

Há vento, sinto frio, acabo por vestir a tal camisola, que não me parece assim tão quente. No entanto, dali a pouco, o comboio indica uma temperatura de 20°. Bom tempo para caminhar.

As dúvidas e receios dissiparam-se. Trago, como é costume, curiosidade nos bolsos.

Começa a décima etapa.

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