Manuela Degerine
Capítulo XXXVII
Décima etapa: de Condeixa a Coimbra
Atravesso Soure, passo os hipermercados, sigo em frente. Não gosto de caminhar à beira da estrada mas hoje é domingo, está na hora do almoço, há por isso pouco trânsito, os carros não me agridem – começa porém a doer-me um dedo do pé direito. Primeira bolha?
Chego por fim a Condeixa, encontro setas amarelas: as velhas amigas. O percurso do dia é confuso, com ziguezagues, subidas e descidas. Sinalização inconstante e, uma ou outra vez, até enganadora. Por exemplo, no caminho para Orelhudo, uma seta inclinada parece sugerir uma viragem à esquerda e o roteiro também é neste troço pouco explícito. Dois quilómetros e meio mais adiante, deixei de ver setas amarelas e a paisagem não coincide com o roteiro. Enganei-me, portanto, saí do Caminho. Pergunto a dois moradores, que me indicam a estrada para Cernache, teimo que prefiro a outra, menos frequentada, primeiro não percebem, depois admiram-se, acabam por indicar a direcção de onde venho. Volto atrás. Por acaso este percurso é agradável, atravesso pela segunda vez uma zona de produção agrícola, milho, couves, alfaces, favas, ervilhas, tudo verde e tenro. Vejo levadas de água transparente. É domingo, passo por muita gente sentada à porta de casa, a trabalhar, a ir e vir – alguns olham para mim, surpreendidos e desconfiados. Para onde vai aquela? De onde vem? O que quer? Para que serve a mochila? Porém, se pergunto o caminho, respondem amavelmente.
Chego ao ponto onde virei à esquerda, sigo desta vez em frente, encontro outras setas amarelas. Desconfio de uma segunda bolha: no pé esquerdo. E a mochila parece-me cada vez mais pesada. Doem-me os pés. Doem-me as costas. Sinto calor.
Pergunto a um homem, sentado à porta de casa, se me pode encher a garrafa de água. Ele levanta-se. Noto que sofreu um AVC e se equilibra com grande dificuldade, apoiado na bengala, agarrado à porta, desculpo-me pelo incómodo, ele responde que precisa de se mexer, faz o esforço de caminhar, abrir a porta, encher a garrafa. Agradeço, comovida.
E medito sobre as dificuldades. Para tantas pessoas o simples movimento de se levantarem da cadeira da exige mais força de vontade do que para mim este alegre caminhar durante trinta quilómetros. Cumpre-me aproveitar agora a felicidade – efémera, sempre – de ter saúde. (Com esta liberdade, este ar, esta temperatura, este campo florido, não é necessário um desmesurado esforço de imaginação para eu notar que viver sabe bem.)
Passo por moinhos e cascatas. Avisto manchas de papoulas a pairar no verde e, em todos os quintais, uma profusão de flores, arbustos e trepadeiras. Parece-me ver rosas de todas as variedades. As hortas têm couves, favas e ervilhas. Os limoeiros e laranjeiras estão carregados de frutos. Sinto, quando passo, perfumes intensos ou delicados: o campo, como as aldeias, cheira bem.
Entre Pousada e Assafarge o caminho passa por mais uma zona de campo colorido e perfumado, com rosmaninho, pascoinha, madressilva, cisto, diversas orquídeas e inúmeras flores para mim desconhecidas. Por exemplo estas manchas de azul... Serão miosótis? Delicio-me também com a toponímia: entro (por exemplo) na freguesia de Antanhol.
Entre Assafarge e Cruz de Morouços multiplicam-se as subidas, descidas, viragens, devia atravessar a auto-estrada por cima, atravesso por baixo, seguindo as setas amarelas, que não concordam com o roteiro, entro numa zona caótica, sigo por uma estrada paralela ao caminho descrito, que não sei como é nem onde está, eu vejo-me mal nesta berma estreita, com carros demasiado frequentes a passar demasiado perto e demasiado depressa – o que demasiadas vezes me assusta. Não é agradável nem bonito nem seguro. De repente: até as setas eu perco. Tenho sede, tenho calor, doem-me os pés, doem-me as costas. E agora perdi-me.
Vou e venho. Houve obras, que decerto alteraram o traçado das estradas, falta sinalização ou então não a vi; o que também é provável. Como as setas tanto podem estar à esquerda como à direita, com ritmo irregular, num poste, na beira do passeio, no alcatrão da estrada, numa pedra, é possível falhar alguma – às vezes, essencial. Por isso trago o roteiro, que completa a sinalização. Quando o roteiro não coincide com a sinalização, sigo contudo a sinalização, pois o roteiro é de 2006 e os caminhos podem entretanto ter sido modificados. No entanto a sinalização também é quase sempre insuficiente e, quando há alterações recentes no traçado das estradas ou caminhos, não foi actualizada. Por consequência: várias vezes me tenho visto nesta aflição.
Chego a tocar à campainha de uma casa. Pergunto pela Cruz de Morouços de que o roteiro fala. Fica daquele lado, lá para cima. Subir era voltar atrás: continuo pela beira da estrada. Viadutos em construção, poeira e máquinas. Felizmente é domingo... Durante a semana caminhar por aqui equivale a um suicídio. Claro que continua a não haver sinalização, nem de Santiago nem aliás de nada, uma única referência me orienta quanto à direcção: avisto Coimbra lá em baixo. Mas... como é que, a pé, consigo lá chegar? Por cima ou por baixo, à esquerda ou à direita? Vou, mesmo assim, por acaso ou intuição, fazendo opções correctas.
À entrada de Coimbra, toco a outra porta, dou com uma disléxica, em vez de direita, diz esquerda, felizmente duzentos metros mais adiante, encontro uma rapariga, a qual, com rigor e simpatia, me explica o trajecto até à travessia do Mondego – aliás pouco antes do observatório astronómico volto a encontrar a sinalização de Santiago. Uf! Por fim.
Chego ao Convento de Santa Clara-a-Nova depois das oito horas: o sol poente doura a cidade. Uma vista magnífica. Paro para admirar.
Desço a calçada, passo por um edifício de estilo Arte Nova, sigo até à ponte. Sinto-me exausta: não me sentei desde que saí da estação de Soure. E, com as idas e vindas, não terei caminhado muito menos de quarenta quilómetros.
Atravesso o Mondego.
Fim de etapa.
sábado, 3 de julho de 2010
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Até eu me aflijo, mas tambem cheiro o campo, e me regalo com as flores.Que belas caminhadas...
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