Manuela Degerine
Capítulo XLIII
Décima terceira etapa: de Águeda a Albergaria-a-Velha
Quando, às seis horas, o despertador toca, embora ainda cansada, acordo com mais energia (e, nesta repetição que me alegra, sendo verdade e não sonho: hoje também não vou dar aulas). Maria, em contrapartida, despertada às duas da manhã pelos peregrinos de Fátima, teve dificuldades em adormecer.
Duche, pequeno-almoço, múltiplas arrumações na mochila e incessantes desarrumações à procura de algo. Último cuidado: unção dos pés com vaselina. E estamos prontas. (Já passa das sete; Paul e Martine partiram há meia hora.) Surpresa, quando calço as botas: não consigo dar um passo. Se na véspera percorri 23 quilómetros a coxear, agora sou incapaz de persistir durante um metro. A incompatibilidade dos pés com as botas atingiu o insuportável.
Sento-me. Quase todos os problemas têm resolução. Não é?... Trouxe um par de crocs para o duche. E se experimentasse caminhar com eles? Maria opina logo que, embora a etapa seja curta, é impossível percorrer os 16 quilómetros que distam de Albergaria-a-Velha com aquilo nos pés. Também duvido mas, na realidade, não vejo outra alternativa. Impõe-se portanto tentar. E, se não for possível, regresso a casa. Paciência... Mais uma interrupção nas Novas Viagens. Ou – começo a tentar consolar-me – só no Caminho de Santiago uma vez que, tendo permanecido em Paris durante tantos anos, as viagens na minha terra se prolongarão em Lisboa.
Se em Setembro e Novembro não me incomodou regressar a casa por, com ou sem bolhas, não ter disponibilidade para prosseguir a viagem, agora sinto a interrupção, de alguma maneira, como um fracasso: não serei capaz de continuar?
O inconveniente desta tentativa de adiamento do problema é agora, por consequência, para além de tudo o que trago na mochila, as barritas, o diário, as quotidianas bananas, a minha completa impedimenta, impor-se eu carregar também com as botas na mochila, mais quilo e meio que, a partir dos primeiros dez quilómetros, se transformam, ignoro por que prodígio, em quinze. Parece-me...
Começam as brincadeiras. A Manuela com as botas na mochila é um cavaleiro que leva o cavalo ao colo. A Manuela não carrega com a cruz mas com as botas. Et caetera. Aguento com estoicismo. E eu própria me rio. (Tenho razões para isso: sinto os pés confortáveis. Mas... Até quando?)
Na saída de Albergaria-a-Velha encontramos um casal de alemães que vendeu quanto possuía na Alemanha para comprar uma quinta perto de Coimbra: a casa dos nossos sonhos, declara a Marlene com um sorriso, onde têm muitas árvores, uma grande horta e até dois burros. Falam bem português. Caminhamos juntos durante um bocado, depois eles avançam ou ficam para trás. Alternamos, ao longo do dia, os encontros com eles ou com Paul e Martine.
Os alemães eram professores mas ele reformou-se por sofrer de artroses e hérnias discais que o haviam paralisado. Melhorou entretanto muito, diz ele (e quem sou eu para pôr isto em dúvida?), graças a um regime alimentar vegetariano, sem leite, ovos, carne ou peixe. Não obstante uma melhor condição física, reduzem agora as bagagens ao máximo, comem as bananas onde as compram e nem sequer trazem saco-cama. Estamos em Maio, há-de fazer calor; concordamos nisto todos. Eu lamento a estupidez de vir com uma capa, polainas e impermeável. Claro que na Galiza há-de haver uma ou outra chuvada, o que não justificará o esforço de carregar com tanto peso durante tantos quilómetros. Quando avistámos os alemães, ainda antes de lhes falarmos, já Maria e eu havíamos notado que a proporção entre os corpos e as mochilas deles não é, nem de perto nem de longe, comparável com a relação entre os nossos corpos e as nossas mochilas. Eu sou uma fraca figura, Maria é tão baixa quanto eu, embora mais forte, a cada passo, temos que mover uma montanha: a mochila.
Continuamos a atravessar uma região de povoamento disperso, nunca nos sentimos no campo, há casas e fábricas, também não é cidade, há hortas e pomares. O tempo mantém-se ainda quente mas agradável para caminhar. As pessoas mostram-se acolhedoras, inquirem com frequência para onde vamos, intrigadas por seguirmos na direcção oposta a Fátima e, quando explicamos que para Santiago de Compostela, há sempre um instante de silêncio. Uma senhora com quem converso – Maria adiantou-se – insiste em me oferecer duas laranjas.
Conto a Maria, ela resmunga:
- Simpática, simpática...
E confia-me que, na véspera, em Águeda, telefonou ao namorado e, no fim, a dona do café, que ouvira a conversa, lhe lançou:
- Quando você voltar, já ele arranjou outra!
Acabamos por nos rir. Ninguém fará comentários a Paul, que também deixou a mulher em casa: a igualdade de direitos entre homens e mulheres não chegou aqui. Desta distinção vem o pasmo com que nos olham, não situando o prodígio em seremos capazes de enfrentar as dificuldades – relativas – do caminho mas em a família – e os vizinhos – nos deixar viver esta aventura. Aliás, tantas vezes, me têm perguntado: E não tem família?... Traduzo sempre: a família deixou-a vir?
Mas a Espanha será assim tão evoluída? Na província francesa, em algumas regiões, não é muito diferente. E, progressivamente, isto mudará. Há a Igreja, eu sei, mas também há a televisão e, através dela, entram os modelos sociais urbanos pela província dentro. A formação escolar e a autonomia económica dão hoje às mulheres mais meios para se defenderem. Acredito nesta mudança.
Perto de Lamas do Vouga atravessamos uma comprida ponte romana numa zona inundável. Toda a região é verde, tem água abundante, campos de milho e árvores de fruto.
A sinalização é por aqui das mais incertas. Os alemães esperam por nós na ponte romana, incapazes de decidirem para que lado seguir, após uma busca cuidadosa de setas amarelas, esperando que o meu roteiro os possa orientar; pode, de facto. Paul e Martine, mesmo com o roteiro, perdem-se no fim da etapa, quase em Albergaria, perguntam a um automobilista, o qual não fala francês, o homem rabisca algo na folha do roteiro com a ajuda do qual eles tentam explicar a situação, de súbito o homem rasga o papel e arranca, provavelmente para ir perguntar mais adiante. Encontramo-los perplexos, à beira da estrada, incertos se devem ou não esperar. Por pouco o homem tinha levado o roteiro sabe-se lá para onde...
Parece-me evidente, pelo que Gegê diz: devemos atravessar e seguir em frente. Seguimos juntos. E, com efeito, daqui a pouco, reconhecemos o percurso descrito. Isto tranquiliza-nos e, em vez de atentarmos no caminho, começamos a conversar.
sexta-feira, 9 de julho de 2010
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Estou no meio do pinhal, Manuela, sem computador, este é emprestado aqui na tasca. Mas vou ler tudinho...
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