Manuela Degerine
Capítulo LI
Décima quarta etapa: de Albergaria-a-Velha a S. João da Madeira
(continuação III)
Maria conta que se perdeu e começou a perguntar, em espanhol, com o sotaque andaluz, às pessoas que encontrava, se havia setas amarelas.
- ...Setas amarillas?
Mais de uma vez, responderam-lhe:
- Santa Maria?... Olhe que não sei! Não conheço... Além é a Nossa Senhora do...
Daqui em diante, quando procurarmos as setas, havemos de berrar:
- Valha-nos Santa Maria!
Maria volta a acelerar e desaparecer. Continuo com o Paul e o Gerhardt. Este não fala português, nem francês nem espanhol. Fala alemão (que só estudei um ano) e inglês (que não gosto de falar); por isso conversamos pouco. Diz-me onde vive (Salzburgo), queixa-se do calor, é o primeiro dia de caminhada, sente-se com pouco treino. No resto do tempo, converso com Paul. Pergunto-lhe por que anda há dez anos pelos caminhos de Santiago. A resposta vai até S. João da Madeira... Fala-me de meditação e de aventura interior, dos limites e da liberdade, de aprendizagem através de um ritmo e de uma disciplina, dos encontros e das coincidências...
Passamos Santiago de Riba-Ul, cuja igreja tem no pórtico uma estátua do apóstolo, atravessamos uma floresta de eucaliptos, onde de novo encontramos a linha de comboio, avançamos por uma ponte medieval, em cujo extremo há um belo espigueiro, trepamos na direcção de Cucujães.
Após numerosas subidas e descidas, entramos em S. João da Madeira. Procuramos logo os bombeiros, orientam-nos para o centro. Sucedem-se várias rotundas, contornamos uma, desejando que seja a última porém, rotunda após rotunda, aparece mais outra. Cansados. Com calor e sede (o meu peixe estaria salgado?). Dois quilómetros mais adiante, chegamos enfim ao centro, já ufanos e aliviados, antecipando o largar da carga: prestes a levitar. Ah, quem nunca aguentou com uma mochila durante trinta quilómetros, quem nunca sentiu, quilómetro após quilómetro, aumentar o peso da dita mochila, não compreenderá este instante de prazer...
Explicam-nos então que têm dois quartéis de bombeiros e o dos peregrinos se encontra na zona industrial. Não é possível... Deve haver aqui um erro, um lapso, um deslize, um engano, um equívoco, um quiproquó, um mal-entendido, um... Pois há: o nosso. Telefono aos bombeiros e, de facto, estão dispostos a acolher-nos – mas na zona industrial.
Esta calamidade basta para dispersar o grupo. Paul e Gerhardt optam logo por uma pensão. Maria, sentada à sombra de um prédio, declara exaustas as forças até à alma imaterial, se alguma tiver – também quer uma pensão. Eu, quanto a residenciais, de Norte a Sul, tenho a minha dose: conheço-lhes os defeitos. Interessa-me saber como é para os peregrinos que queiram pernoitar nos bombeiros; e até, de um ponto de vista pessoal, sinto-me melhor num ginásio, rodeada de heróis, do que numa residencial. Paul reclama, antes que eu desapareça, para ficarmos em contacto, o meu número de telemóvel. Registo também o dele e despeço-me dos companheiros.
Uma diferença – e não a menos significativa – entre nós e os peregrinos de Fátima é que somos viajantes individuais e individualistas, defendemos e respeitamos, cada um à sua maneira, a liberdade, as manias e as particularidades de cada um. Admiramos o comunismo dos grupos portugueses (eu, em todo o caso: admiro-o) mas somos incapazes de nos submeter, daquela maneira, ao apagamento individual dentro do grupo.
Depois dos adeuses e recomendações, tem cuidado, não sejas imprudente, recomeço a caminhar: mais dois quilómetros.
sábado, 17 de julho de 2010
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