Manuela Degerine
Capítulo LVIII
Décima sexta etapa: do Porto a Vilarinho (conclusão)
Ainda com o coração aos pulos, sigo a direcção apontada pela seta – aos sobreviventes. Lívida e cega (a chuva é um irresolúvel problema para quem como eu usa óculos: sem lentes não vejo porém, com gotas de água nas lentes, também não vejo ou, na melhor das hipóteses, capto imagens deformadas por minúsculas lupas), recriminando-me, uma vez mais, pela insensatez desta aventura. Devera seguir o Camino Francés, que tantos milhares de peregrinos percorrem cada ano, não correria o risco de saltar os separadores nas vias rápidas, não é Portugal, certo, mas é Europa, oitocentos quilómetros em França, sem riscos nem surpresas, outros tantos em Espanha – estes já na península ibérica.
Subo a encosta. A temperatura continua fresca, portanto não transpiro e, consequência da emoção, sinto uma intensa vontade de urinar; nenhum café à vista. Passo por um local onde se organizam banquetes de casamento: bonito solar com bonitos jardins. Estão a enfeitar a sala, chega o bolo de noiva, nota-se grande azáfama... Inquiro se posso ir à casa-de-banho. Conduzem-me ao responsável que, apesar de tão ocupado, me acolhe com simpatia e insiste em oferecer uma bebida; conversamos um pouco. Saio mais reconciliada com a Maia.
Continuo a subir a encosta, chego a uma praça, a igreja com azulejos, avanço por uma calçada provinciana, avisto o solar da quinta de Santa Cruz, rosas pelo muro abaixo, vinha por cima dos muros – a parte mais antiga e preservada da Maia.
Interrogo-me, enquanto caminho, pois hoje a veia é filosófica, obrigando-me a questionar, por que razões a calçada, o muro branco, as pedras de granito, as folhas de videira me parecem belas. Que critérios que me levam a qualificar esta rua como bonita e os prédios, do outro lado, como feios? Em primeiro lugar, há nesta rua o granito – e sou, mais do que outras pessoas, sensível aos atractivos da pedra: a cor, o brilho, as formas, os desenhos, o contacto... Depois, enquanto as ruas de prédios repetem um número restrito de formas, o que vejo aqui é único: as pedras, cortadas com tamanhos distintos, foram ajustadas num painel único, que se prolonga na calçada, se completa na vinha e na roseira... Em seguida há uma harmonia de volumes entre o meu corpo e o espaço por onde circulo. E, por fim, como passam poucos carros, resulta o silêncio, o sossego, a qualidade do ar que agora aprecio. Ou seja: o equilíbrio, a variedade e a singularidade, tal como o bem-estar que em mim suscita são (alguns) componentes do belo. Isto é ou não válido para os outros, mas mantém-se fácil de explicar – porém como analisar com rigor a estética das pedras? O conjunto é portanto subjectivo e outros acharão Almada mais bela: a variedade dos graffiti, a novidade na esquina da rua, os prédios em tons vários de humidade, aquilo a que, num eufemismo que me diverte, amigos meus designam como vivo. (Eu, quando saio da ponte 25 de Abril, olho para os centros comerciais, um deles de cor roxa, para variar… Pela forma imaginei uma mesquita: fazem afinal sacrifícios a Hermes.) Quando era professora, surpreendia-me por alunos de família portuguesa, com pais originários de aldeias trasmontanas, descreverem imagens de Óbidos como casas velhas; e, embora eu sublinhasse a diferença entre velho e antigo – não os convencia.
Dirijo-me para a zona industrial, que longamente atravesso até Gemunde; e que não entra, de maneira nenhuma, para mim, na categoria do belo. Viro enfim na direcção de Vilar de Pinheiro e, mais adiante, de Vilar e Gião. Interrogo-me se Vilar e Vilar de Pinheiro serão a mesma terra, os mapas de que disponho não me esclarecem todavia, como o destino de hoje é Vilarinho, outra terra com nome semelhante, deduzo que não.
O roteiro indica 7,5 quilómetros entre Gemunde e Gião. Atravesso vários aglomerados urbanos, penso que é Vilar, ainda não, informam os habitantes. Percorro, uma vez mais, um território de povoamento disperso, nem realmente urbano, nem francamente rural, vários pedaços de paisagem entrariam na categoria do meu belo, se não olhasse para o que está ao lado. Quintas, solares, vinhas, prados, de mistura com entulho, barracões, buracos no alcatrão, candeeiros horrendos, azulejos de cozinha, colunas e mais colunas...
Continua a chover. Uma chuva que não molha os pés mas obriga vestir a capa e o impermeável. Há areia no chão; por isso tenho, de dez em dez minutos, que me apoiar no bordão, levantar um pé ou o outro, tirar o croc, às vezes até, tirar a meia, sacudir uma pedra. Sigo na beira de estradas estreitas, quase sem berma, com curvas frequentes e muita circulação automóvel; apesar de a paisagem começar a ser mais rural e, não raro, até bonita, não é um percurso agradável. De vez em quando, há uma paragem de autocarro: sento-me um pouco, para aliviar os ombros.
Atravesso Mosteiró quando noto, com o focinho entre as grades de um quintal: um rafeiro.
terça-feira, 20 de julho de 2010
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