domingo, 11 de julho de 2010

O Emir-Poeta Al-Mu’tamid, de Ana Cristina Silva


António Gomes Marques

I

Aquando da polémica provocada pelo projecto da Constituição Europeia muito se falou do esquecimento a que tinha sido votada a influência do catolicismo, influência essa que não seremos nós a negar; no entanto, o mundo moderno e o seu desenvolvimento científico, que viria tornar possíveis as sociedades industriais, se muito devem ao catolicismo, não podem esquecer a dívida ao mundo antigo e ao mundo muçulmano. As influências clássicas, nomeadamente da filosofia grega, ficaram a dever-se aos árabes, não fossem as suas traduções e muitos dos filósofos clássicos continuariam no desconhecimento de todos nós; para além dos árabes, foi fundamental a influência dos muçulmanos e dos judeus. A Espanha dos séculos VII e VIII é o espelho da civilização muçulmana de que, facilmente, se encontram hoje vestígios bem marcantes. Se falarmos de Portugal, basta-nos visitar Beja, Mértola, Silves, Faro, …

No final do século VIII assiste-se à assumpção do Islamismo como um complexo político-religioso, considerando o poder político como fundamental para a consolidação na Terra da vontade de Deus. Os juristas e os teólogos muçulmanos vão desenvolver um direito assente numa sociedade teocrática em que o valor do Estado só se mede pela maior ou menor devoção à religião revelada, segundo esse direito o Estado tem de ser um mero servidor da religião muçulmana, dividindo o mundo «entre o dar-al-islam, o povo que vivia sobre a regra muçulmana, e o dar-el-arb, as terras dos poderosos campos de batalha não convertidos» ((Heer, Friedrich – O Mundo Medieval, Editora Arcádia, Lisboa, 1968, trad. de Maria Ondina). Os territórios conquistados e sob a influência muçulmana são vastos, mas uma sociedade fechada como queriam os juristas e os teólogos muçulmanos não é necessariamente uma sociedade imune a influências dos povos dos territórios conquistados, tendo sido «possível aos judeus e aos cristãos subirem alto nos estados muçulmanos, por vezes até ao cume, ao serviço do governo e da administração financeira» (Heer, F., pág. 248). Estas múltiplas influências deram origem à criação de muitas seitas com as mais variadas influências místicas, religiosas e filosóficas e às consequentes divisões numa sociedade que se queria una.

Diz-nos Adalberto Alves, com a sua habitual erudição no que a estes temas respeita: «Com a deterioração do Califado de Córdova, o Islão Peninsular perde força aglutinante, mostrando-se com nitidez as contraditórias pulsões que no seu seio se debatiam. Entre convertidos, árabes e berberes far-se-á a partilha de poder e território num generalizado ambiente de guerra civil (fitna). Daí surgem os turbulentos e, em geral, precários reinos partidários ou de Taifas (mulûk al-tawa’if) do primeiro período, destinados a uma efémera existência de sessenta e quatro anos, com início em 1031» .

Estas divisões acentuaram-se e no século XI as rivalidades entre os emires das Taifas sobrepunham-se à necessária unidade muçulmana, mas não impedia que nessas cortes houvesse uma grande tolerância religiosa a par com uma cultura abrilhantada por escritores e poetas, sendo alguns destes poetas os próprios governantes, como o emir da Taifa de Sevilha, Al-Mu’tamid ibn’Abbad (1069-1091), nascido em Beja. Nestas cortes eram frequentes as públicas polémicas entre teólogos do islamismo, do judaísmo e do cristianismo.

Das referidas Taifas, destaca-se a de Sevilha, cujo poder foi tomado por Hishâm II al-Mu’ayyad, fundando assim a dinastia abádida, cujos territórios foram sendo alargados à custa dos vizinhos e por acção do seu filho ‘Abbâd Abûal-Qâsim billâhi al-Mu’tadid. «A ambição expansionista cedo o leva à conquista sucessiva de Carmona, Jerez, Arcos, Niebla, Morón, Mértola, Serpa, Silves, Faro, Huelva e Ronda, transformando Sevilha na capital do mais extenso e poderoso reino Taifa» . Esta política vai ser prosseguida pelo filho deste, o nosso poeta al-Mu‘tamid, podendo afirmar-se que a ambição deste seria «a reunificação do território califal» (Alves, Adalberto).

A falta de unidade entre as várias Taifas – Sevilha, Córdova, Málaga, Valência e Saragoça -, aliada à tolerância religiosa que nesses reinos se vivia, permitiu a entrada em cena dos Almorávidas, vindos do Sara, o deserto africano, que acabaram por impor a sua ortodoxia religiosa, considerando-se os únicos fiéis seguidores de Maomé. Contra os emires das Taifas, os quais, ao permitir tal tolerância religiosa, esquecendo que «não há outro deus senão Alá e (que) Maomé é o seu profeta», se tornam infiéis e merecedores de castigo.

Conquistado Marrocos, o caminho agora apontava para a destruição dos infiéis emires das Taifas, que não deixavam de se digladiar entre si e que viviam fazendo acordos com os cristãos, pagando-lhes mesmo tributos, o que indignava os ortodoxos muçulmanos.

Com a guerra fratricida, o luxo da corte e o pagamento dos referidos tributos não restava outra hipótese senão aumentar impostos, tornando a população cada vez menos predisposta a defender o reino, obrigando o Estado a contratar cada vez mais mercenários, levando o rei Afonso VI de Castela a não se contentar apenas com os tributos e a aumentar as suas exigências com vista ao domínio dos territórios das Taifas, o que obriga al-Mu’tamid a pedir auxílio ao emir dos Almorávidas, auxílio que viria a ser concedido mais do que uma vez e que abriria caminho à conquista dos territórios das Taifas pelos Almorávidas, conquista esta que, em meados do século XII , cairia nas mãos dos Almóadas, berberes do Alto Atlas. Mas este período já ultrapassa o tempo do nosso poeta, é a ele que nos interessa agora regressar.

Fazendo fé no pouco que se conhece do tempo das Taifas e, sobretudo, na poesia e nas cartas de al-Mu’tamid, este sempre terá pensado que o caminho a seguir não seria a guerra fratricida, mas sim o combate aos cruzados e a Afonso VI de Castela, unindo portanto os reinos das Taifas nesta luta comum, mas a sua prática foi seguir o caminho que tinha sido o do seu avô e o do seu pai, com os resultados referidos. Na carta em que pede auxílio ao emir dos Almorávidas, escreve o poeta, a dado passo: «Nós, Árabes, neste Andalus vemos o nosso povo em ruínas, as nossas populações desunidas e as nossas genealogias abastardadas pela renúncia aos princípios da nossa santa religião. Não passamos de facções, sem laços de solidariedade e sem união. », o que mostra bem a consciência de ter escolhido o caminho errado e que não era o que queria na sua juventude, como testemunha, claramente, a sua poesia.

No combate final contra os Almorávidas perde vários dos seus filhos e acaba partindo para o exílio com o que resta da família, incluindo a sua bem-amada ‘Itimad, a escrava que terá conhecido nas margens do Arade (outros dirão nas margens do Guadalquivir). Os restos mortais de al-Mu’tamid repousam num Mausoléu em Aghmât, perto de Marráquexe.

II

Chegado é agora o momento de justificar o título deste texto. Falemos então de Ana Cristina Silva, a escritora brilhante que recentemente mais me tem espantado e encantado.

Depois de As Fogueiras da Inquisição, onde trata de três gerações de uma família judaica portuguesa na sociedade do nosso século XVI, desde o reinado de D. Manuel I até à dinastia filipina, onde as fontes insertas nas várias histórias da Inquisição e sobre os Judeus em Portugal, nomeadamente a Inquisição de Évora, de António Borges Coelho, são as balizas históricas para o mundo criado por Ana Cristina Silva, de que a autora é profundamente respeitadora; depois de A Dama Negra da Ilha dos Escravos, onde, contando a história da fidalga D. Simoa Godinha, a mulata oriunda de uma família rica de S. Tomé, a romancista fala não só da vida em S. Tomé, mas também da sociedade lisboeta do século XVI, vem agora Ana Cristina Silva falar-nos do Emir-Poeta al-Mu’tamid e da complexa sociedade peninsular do século XI, em que ele viveu, cujo título completo é Crónica do Rei-Poeta Al–Mu’ tamid. Todos estes livros foram editados pela Editorial Presença (passe a publicidade gratuita).

Há, nestas obras, uma característica comum: a pobreza dos dados históricos para a construção das vidas que a autora nos dá a conhecer, particularmente nas duas últimas, o que dá à ficcionista uma grande liberdade de criação. Mas uma outra característica não pode deixar de se realçar: Ana Cristina Silva faz questão de respeitar a História. Tudo o que escrevemos na parte I deste texto poderia encontrar-se na obra da escritora com um pouco de imaginação, imaginação essa que está sempre presente em todos os historiadores.

Há ainda uma característica, em nossa opinião verdadeiramente fundamental nesta autora, que é a riqueza psicológica das personagens, de todas as personagens, principais ou secundárias, que cria nas suas ficções, não sendo naturalmente despiciendo a influência que nessa criação tem a profissão da autora, pois, para além de doutorada em Psicologia da Educação e de especializada na área da aprendizagem da leitura e da escrita, Ana Cristina é docente universitária das cadeiras de Psicologia da Comunicação e da Linguagem e de Seminário de Estágio no Instituo Superior de Psicologia Aplicada.

Dito isto, não se assuste o leitor; Ana Cristina Silva não procura a chamada linguagem erudita. Conhecedora das técnicas, sinto-a como senhora de uma profunda cultura humanista, tomando a expressão cultura humanista como significando o não reconhecimento de nenhum valor superior ao ser humano. Cria as suas personagens numa linguagem simples, acessível a todos os leitores, competência que só está ao alcance dos grandes escritores e Ana Cristina Silva, na minha modesta opinião, é uma grande escritora. Veja-se a forma como trata quer os momentos de intimidade das suas personagens e/ou as suas reflexões pessoais, quer os momentos dessas mesmas personagens em acção, como, por exemplo, o combate das massas guerreiras no confronto final com os Almorávidas e a acção individual do emir-poeta nesse mesmo confronto, a forma como expressa os sentimentos de cada um. Os sentimentos contraditórios do povo para com o seu emir são também exemplares, mostrando-nos ser essa uma das razões por que o fim de al-Mu’tamid não poderia ser outro: morrer no exílio, longe do luxo em que foi criado, mas rodeado do amor dos que sempre o amaram verdadeiramente, como a sua mulher preferida, a sua rainha ‘Itimad, falhada que foi a sua tentativa de morrer em combate. É de pessoas que sentimos vivas que a autora nos fala. É a história em movimento dialéctico, cheia das contradições com que temos de construir o futuro.

Lembro a apresentação que do livro fez o Prof. Adalberto Alves, em Vila Franca-de-Xira, e termino como ele terminou: «Obrigado Ana Cristina por esta Crónica do Rei-Poeta Al–Mu´tamid .

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