Júlio Marques Mota*
(Continuação)
A reforma de Bolonha é ela desde o seu princípio inscrita na mesma lógica de redução de despesas e do papel do Estado, mas tal como com a crise, o melhor é pensar que se algo está mal na Universidade está algures e não na reforma de Bolonha imposta pelo neoliberalismo, não no sistema que gera a situação de crise económica ou no sistema que gera a crise dos saberes e das aprendizagens. De novo a analogia da eficiência dos mercados financeiros com Bolonha é imediata. Que sentimos nós com estes três anos de Bolonha? Que trabalhamos muito mais, mas mesmo muitíssimo mais, e com uma certeza, ensinamos muito menos e os estudantes, esses, inegavelmente aprendem muito menos. Ensinamos menos. É então disso que se deve falar. E a que assistimos nós? À discussão sobre a aplicação de novas metodologias dentro de Bolonha, ou então à discussão sobre a reestruturação dos saberes, antes de se definir de que saberes é que estamos a falar ou, ainda melhor, de que aquisição de saberes é que queremos para os filhos deste país. Tal como na crise, estamos a passar ao lado do que é fundamental e, neste caso, pensamos que o que é urgente é a desconstrução da reforma de Bolonha. Só assim, cremos, se pode redefinir a Universidade de hoje para um melhor ensino de amanhã. Aproveito então para apelar que se faça e com urgência uma profunda reflexão sobre os impactes da reforma de Bolonha na qualidade do ensino que hoje é prestado nas Universidades.
Adicionalmente, devemos encarar a hipótese de que Bolonha seja em si um absurdo se considerarmos que as sociedades modernas são cada vez mais globais, estão cada vez mais assentes no conhecimento de que emergem a seguir as competências. Bolonha inverteu a lógica do conhecimento e da aprendizagem. A redução de Bolonha a um nível de três anos (a licenciatura) depois mais dois (mestrado) e eventualmente mais três (doutoramento) é caricata e vejamos porquê. Bolonha, inicialmente falava de dois níveis de ensino. Vejamos então um excerto do texto da Convenção de Bolonha:
“Adopção de um sistema baseado essencialmente em duas fases principais, a pré-licenciatura e a pós-licenciatura. O acesso à segunda fase deverá requerer a finalização com sucesso dos estudos da primeira, com a duração mínima de 3 anos. O grau atribuído após terminado a primeira fase deverá também ser considerado como sendo um nível de habilitações apropriado para ingressar no mercado de trabalho Europeu. A segunda fase deverá conduzir ao grau de mestre e/ou doutor, como em muitos países Europeus”.
Então Bolonha propõe, e o texto é claro: “O grau atribuído após terminado a primeira fase deverá também ser considerado como sendo um nível de habilitações apropriado para ingressar no mercado de trabalho Europeu”. Propõe que, em vez de um ensino em profundidade, com uma base de conhecimentos que permitam com pouco custo a sua renovação ao longo do tempo, ao longo da vida, e que hoje necessariamente deveria ser assim, se faça um ensino com base em formações curtas, em formações profissionais facilmente desvalorizáveis. No primeiro caso, o do ensino em profundidade, há uma exigência, a de os estudantes que aprendem a saber, aprendam também a rapidamente serem capazes de fazer, e há também uma certeza, a de que o saber teórico tem também uma eficácia na prática. Por outras palavras, não há competências se não houver conhecimento . Conhecer é o dado fundamental para se aprender a fazer, para se adquirirem competências. Bolonha, em vez disso, vem inverter a situação: primeiro, o saber fazer, depois o aprender a saber, a conhecer ! O drama é que esta segunda fase é diminuída pela pressão da primeira e depois, num país de fracos recursos, ou não se tenta a segunda ou, quando se tenta, para muitos deles, já é tarde, muito tarde mesmo. Por isso, muitos dos efeitos nefastos de Bolonha são irreversíveis, marcam a geração que os sofre e que com eles foi criada. Bolonha esquece e com ela grande parte dos professores que esse esquema defendem, que o saber , enquanto que abstracto, teórico, é também saber gerador de eficiência, é saber gerador de capacidades para na prática trabalhar com os dados da realidade e de ser capaz de a transformar. Bolonha ignora que não há competências ganhas fora do conhecimento, do saber. Por isso há quem diga que Bolonha não é só a inversão dos planos é também a inversão de funções, uma vez que faz das Universidades apenas apêndices das empresas. Para os críticos de Bolonha, entre os quais me situo, as Universidades têm como missão a de ensinar a aprender, enquanto as empresas tem uma outra função, complementar, que é a de ensinar a fazer. Creio mesmo que agora até há Universidades ou Faculdades que agora fazem essa função das e para as empresas, relegando nas suas funções o ensino de construção reconstrução da formação intelectual e técnica de base, das suas licenciaturas. Aqui e de novo, mais uma confusão de papéis: as empresas são insubstituíveis nesta função, a de ensinar a fazer.
Aliás, há dias numa troca de correspondência com Martin Wolf , a propósito de um seu artigo, pedi-lhe a demonstração de uma das suas conclusões e a razão era muito simples: não tinha dúvidas quanto ao que ele afirmava, mas queria passar o seu texto aos meus alunos e fazê-lo só tinha sentido se estes fossem capazes de reconstruir, desde a base, o seu raciocínio, o raciocínio do autor. Essa é a função também do professor e, como tinha dúvidas sobre a via que este tinha seguido e quanto à referência bibliográfica utilizada, solicitava que me esclarecesse. Mas isto não tem nada, mas nada a ver com formação profissional, ainda por cima, com as formações curtas agora aplicadas, tem a ver sim, com o sentido de Universidade. De uma outra maneira, tem a ver com a criação de inteligência e essa, que me desculpem os arianos deste país, também se “produz”, desde que dêem às Universidades, os meios financeiros porque os meios os humanos, os professores, e “a matéria-prima”, os alunos, para a sua “produção” tudo isto existe mas agora, a degradar-se pela má utilização, pela má definição dos objectivos que são inerentes a Bolonha.
Mas levemos a lógica um pouco mais longe, não é preciso muito: como é possível ter ciclos de mais dois anos e com muita qualidade, também eles curtos em horas de ensino, pois os alunos até já são mestres, se não pode haver ensino de profundidade dado o nível de saída do primeiro ciclo, a licenciatura, e dado o pouco tempo de que se dispõe, menos que antes, quando a base de partida era muito mais sólida em conhecimentos e em maturidade. Questão tanto mais enigmática quando uma regra de ouro preside a todo o ensino: só se ensina, de facto, o que alunos estão em condições de poder aprender. Por isso, duas perguntas aqui deixo: qual a filtragem na saída no primeiro e no segundo Ciclo, qual a filtragem na entrada para o Ciclo seguinte? Respostas difíceis, porque agora, em diversas Faculdades, as pautas já não são públicas, cada aluno recebe apenas por email a informação da sua nota e apenas da sua, como se o aluno na sua relação com a sua faculdade não seja membro de um colectivo, em que neste assume particular relevo a sua inserção nas turmas de que fez parte, e que agora, na lógica do neoliberalismo e do individualismo que o caracteriza, deixa de existir e passando a ser proibido que o aluno nesse colectivo se reveja.
É por estas razões que não vejo saída da crise no quadro do modelo que ampliou a crise no ensino em Portugal: o quadro de Bolonha.
Nesta linha, tomo a liberdade de aqui colocar alguns pequenos textos meus em que expressei o que ia pensando e sentido com a reforma de Bolonha. São textos despretensiosos, feitos na urgência dos sentimentos nos momentos em que foram escritos e nada mais do que isso. Assim, em anexo, junto aqui os seguintes textos:
(1) Uma reflexão sobre a reforma de Bolonha, antes de esta começar a ser aplicada. Será curioso questionar a realidade de hoje com o que aí se afirma. Texto inserido como Nota Prévia de um texto de apoio à disciplina de Economia Internacional de que sou o autor.
(2) Excerto de uma carta enviada a um antigo ministro da tutela do Ensino Superior e grande especialista em questões de ensino.
(3) Pequeno texto enviado à direcção do jornal Público.
(Continua)
* Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
sábado, 24 de julho de 2010
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Não sei o suficiente sobre o tratado de Bolonha, mas o que me parece é que ao fim dos 3 primeiros anos as pessoas devam ter adquirido as competências necessárias para as muitas funções que o mercado de trabalho solicita, e o segundo ciclo ficaria para quem se dedicar à investigação e ao ensino.É como introduzir os antigos Institutos Industrial e Comercial.A partir desta plataforma de competência, ou se encaminhava para o mercado de trabalho ou para as Universidades.
ResponderEliminarQuando aumenta a esperança de vida e a idade da reforma não seria de também de aumentar, em lugar de diminuir, o tempo de estudo?
ResponderEliminarPorquê a pressa em despachar os alunos para o mercado de trabalho, que não os absorve?
Por outro lado, parece-me que um 2º ciclo, mais avançado, beneficia duma experiência prévia de trabalho - que lhe dá outra perspectiva - se não é uma mera extensão, ainda pouco crítica, da licenciatura e pouco lhe acrescenta.
Nas empresas nota-se uma grande falta de quadros médios.Eu tenho um sobrinho que fala:Espanhol, Inglês,Polaco,e Letão e, óbviamente, ninguem precisa dele.Além de ser licenciado em História. E se tivesse tirado hotelaria, com todas estas línguas?
ResponderEliminarNão sei se em algumas áreas de ensino Bolonha veio a ser benéfico. Naquelas com que contacto (psicologia, ensino especial, reeducação, serviço social...), todos estão contra - professores e alunos. Os 3 anos iniciais não lhes servem de nada.Tão verdinhos para o trabalho...
ResponderEliminarFiquei com a ideia, também, que para os dois anos a seguir, já tinham que pagar. É mesmo?
Mais uma vez o cifrão a orientar?