sábado, 28 de agosto de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - Saúde: do serviço ao negócio



O modo como está a ocorrer a transformação da saúde, de serviço público em negócio lucrativo, é escandaloso, inconstitucional e certamente violador do direito dos cidadãos à saúde. O que se passa é caso único nos países de desenvolvimento comparável ao nosso.

Alguns exemplos bastarão para dar conta da gravidade da situação. Recentemente a Ministra da Saúde convocou todos os directores de serviços públicos de procriação assistida, no sentido de lhes criar as condições financeiras e humanas para aumentar significativamente a oferta pública destes serviços. Todos, excepto um, recusaram a oferta, sob vários pretextos e por uma só razão: todos eles dirigem serviços privados de procriação assistida e não queriam que os serviços públicos lhes fizessem concorrência.

Outro exemplo, ainda mais perturbador. Um determinado hospital público decidiu aumentar a oferta de serviços especializados para corresponder às solicitações crescentes dos cidadãos. Pois viu esta decisão contestada nos tribunais pelo sector empresarial hospitalar com o fundamento de que, ao expandir os serviços públicos, se estavam a pôr em causa as legítimas expectativas do sector privado quanto à sua expansão e lucratividade. Apesar de um tal propósito bradar aos céus, há juristas de renome dispostos a dar pareceres eloquentes a favor dos queixosos e só nos resta esperar que os nossos tribunais façam uma ponderação de interesses à luz do que determina a Constituição e decidam correctamente.

Terceiro exemplo. Contra o parecer da Ministra da Saúde, o Ministro das Finanças autorizou um acordo entre um hospital privado, pertencente ao Grupo Espírito Santo, e a ADSE, com o objectivo de, com o novo fluxo de doentes, viabilizar um hospital em dificuldades. O dinheiro gasto nesse acordo não poderia ter sido aplicado, mais eficazmente, na expansão dos serviços públicos? A ironia da história é que, pouco tempo depois, os jornais anunciavam em primeira página que os utentes da ADSE estavam a ser preteridos no referido hospital por a ADSE pagar pior.

Estes três exemplos são ilustrativos do ataque cerrado que está a ser sujeito o SNS e do poder político que o sector privado já adquiriu entre nós. A actividade empresarial no domínio da saúde é uma actividade legítima, mas deixará de o ser se interferir com o direito à saúde gratuita constitucionalmente consagrada. Imagina-se que a Polícia Judiciária pudesse ser accionada em tribunal por, ao desenvolver os seus serviços de investigação, estar a violar as legítimas expectativas dos detectives particulares.

A destruição do SNS esteve até agora a cargo dos governos do PSD e do Ministro Correia de Campos. Perante o levantamento dos cidadãos, o governo procurou mudar de curso e a actual ministra parece ser uma honesta defensora do SNS. Terá poder? Os sinais não são animadores porque as medidas a tomar são drásticas. Primeiro, os directores de serviços hospitalares devem estar em regime de exclusividade, não só pelo tempo que devem dedicar ao serviço, mas para evitar conflitos de interesses. Até agora, sempre que o Governo tentou, deixou-se atemorizar pelo medo de perder os melhores. Não há que ter esse medo, já que dispomos de muitos profissionais competentes e dedicados. É preciso acabar com a figura do director de serviços que não dirige o serviço e é apenas o chefe dos médicos. Segundo, é urgente repor e valorizar as carreiras médicas para não criar incertezas desmoralizadoras. Terceiro, leva dez anos a formar um médico num sistema público: não faz sentido que, ao fim desses anos, o sistema privado se aproprie de todo esse investimento e o transforme em lucro. Os médicos deveriam ser obrigados a ficar no serviço público por um período razoável. Quarto, devem aprofundar-se as formas de contratualização nos serviços públicos – desde que não passem pelas parasitárias empresas de fornecedores de médicos (onde desaparece a responsabilidade pelo acto médico) – para permitir a redução das listas de espera, como aconteceu recentemente em oftalmologia. Quinto, não há nenhuma razão para que uma lâmpada num sistema de imagiologia leve mais tempo a substituir no sistema público que no sistema privado.

Se, num dado momento, o SNS não tiver condições para garantir a saúde de todos os cidadãos, pode comprar serviços médicos aos serviços privados, mas, no espírito da Constituição, isso só pode ocorrer se não puder expandir os seus próprios serviços públicos. Os casos atrás mencionados mostram que pode e quer. Ainda vamos a tempo?

(Publicado na revista "Visão"  em 28 de Agosto de 2008)

3 comentários:

  1. Há muitos argumentos aqui expostos que são válidos mas não podemos esquecer as culpas próprias. A exclusividade, a formação, as doenças que não dão dinheiro, tudo esta a ser suportado pelo SNS. O que dá dinheiro está a ser passado para os privados. Isto faz parte de uma política tonta que leva a que os HHP, hospitais da CGD, logo do Estado façam concorrência ao Estado: que 70% dos seguros de saúde sejam da CGD. Ora a saúde privada devia ser complementar da SNS e não concorrente, assim temos o Estado a tratar os portugueses ricos nos hospitais HPP e os pobres no SNS! É nisto em que se transformou o Estado,mas que pelos vistos é venerado por muita gente...

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  2. Tudo se resume a uma conclusão. O poder assim quer, o poder assim delineou, o poder assim age. Tudo corre como eles pretendem. Eles saberiam bem o que fazer se quisessem virar o bico ao prego. É isto que eles querem. Só um governo de esquerda, esquerda a sério, poderia mudar o sentido das coisas. O resto são cantigas

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  3. tens toda a razão, e se há coisa que vale a pena defender é o SNS. Está-se mesmo a ver que um dia privatizam os HPP da CGD com uma daquelas desculpas, aliás já ensaiadas, que a CGD deve ser só um banco e deve privatizar o resto em que está metida. E lá vamos ter os privados a dar um salto de todo o tamanho na área da saúde.

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