sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Certidão de Óbidos

Marcos Cruz



Tenho uma amiga que não sabe de onde veio, ou de quem veio, mais precisamente. Veio ter comigo assim, de repente, do nada, como terá vindo ter com ela mesma. Depois de algumas conversas, e percebendo que, embora perdidos na encruzilhada de sentidos que a vida nos aponta, ambos vivíamos em nós mesmos, e por isso nos entendíamos, confidenciou-me que o segredo da sua génese lhe fora sonegado desde que mostrou curiosidade sobre ele. Fê-lo, claro, porque faltavam cartas na mesa. Desorientada, naturalmente, disparou em todos os sentidos, como uma mãe que procura um filho desaparecido, tocando nos ombros de cada oportunidade, à espera de que ela se vire e a cara lhe sorria. Desenvolveu a fé. Falhou, falhou, falhou.

Foi aprendendo, por razões de sobrevivência tão intimamente ligadas a quem tem algo de fundamental para encontrar, mesmo não sabendo o que seja ou não tendo pistas sobre onde esteja, a retirar de cada falhanço a ilação certa, o aspecto bom. Reverteu em amor o que para quase todos seria medo e ódio, uma vida amarga, um mar de espinhos. Como a roda de um carro, ou talvez de uma bicicleta, dada a sua propensão, de raiz dedutível, para as coisas mais transparentes, menos engenhosas, foi acima e abaixo, ao oito e ao oitenta, e entre ambos chegou a deixar de rodar, por uns tempos. Ou seja, tentou tudo. O aconselhável e o impensável, o sensato e o louco, a diluição no colectivo e o radicalismo individual. E os tons do meio, tantos quantos pôde, até hoje, coleccionar. Quando, numa dessas vagas, deu comigo, era como se quase não lhe faltassem peças do puzzle mas não soubesse onde as pousar, como se não tivesse chão. Propus-lhe um uso incerto do meu, algures entre a realidade e a fantasia, um meio conto. Parecia decidida a ficar, a permanecer, mas acabou por deixar o meio conto a meio, não sem antes se fazer valer da experiência acumulada na sua busca pessoal para me desbloquear uma veia criativa, uma via construtiva, e acender mais uma luz no sentido da minha vida, ironia de um destino que ela, então, não reconhecia como tal, ou não reconhecia de todo. Foi para casa, para Óbidos, a terra onde nasceu. Ter-se-ão passado dois meses.

Hoje recebi uma carta dela. Lá dentro, li que não lhe importava já outro sentido na vida do que estar bem e em paz, e sorrir, com dignidade, esteja onde estiver, faça o que fizer, seja qual for o desafio que lhe aparecer pela frente. A questão terá deixado de ser descobrir o sentido da existência para passar a ser existir em todos os sentidos. Nos dela e nos dos outros, como existe, de facto, no meu. Pensando nisto, aliás, perguntei-me se o verdadeiro sentido da vida dela, por paradoxal e até algo triste que enganadoramente se afigure, não seria ajudar os outros a encontrar o sentido da vida deles. Varrendo com uma mão os pensamentos e já quase a guardar, com a outra, o envelope, estremeci de surpresa quando, ao passar os olhos pelo remetente, li: Rua do Cemitério. Então, não me perguntem porquê, tive a certeza de que a minha amiga estava bem, como que renascida. Aquela carta era uma certidão de nascimento. E, pelo que não deixa de ser outra ironia do destino, uma certidão de Óbidos.

Sem comentários:

Enviar um comentário