terça-feira, 3 de agosto de 2010

Esquerda precisa-se!

Carlos Loures

E Em todas as esquinas da cidade
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes…
dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros

Lembram-se? É assim que começa «A Invenção do Amor», o belo poema de Daniel Filipe. E bem necessário seria que um anúncio solicitando uma verdadeira Esquerda fosse publicá-lo “com carácter de urgência” em todos os jornais, gritá-lo pela rádio, mostrá-lo na televisão, pois existem muitos milhares de cidadãos de esquerda que não se revêem em qualquer das organizações, ditas de esquerda, existentes e que sentem bloqueados, cercados pela direita, pela falsa esquerda e pelo seu ideal de uma esquerda autêntica. Mas, perguntarão, então não existem já numerosos partidos e movimentos de esquerda, dentro e fora do Parlamento?

Depende de como definimos o conceito de esquerda. O poeta francês Jean-Arthur Rimbaud disse que era preciso «mudar a vida». Karl Marx, embora, como Engels, nunca tenha dito ser «de esquerda», afirmou que era indispensável «transformar o mundo». A mudança da vida, isto é, dos valores mercantilistas e da lógica consumista, que regem a sociedade em que vivemos, e a transformação do mundo, ou seja a Revolução que varra as desigualdades, as injustiças sociais, para mim constituem duas excelentes definições do que deve enformar um pensamento de esquerda.



Os partidos da esquerda parlamentar, embora as suas bases programáticas estejam preenchidas com respeitáveis princípios, logo que envolvidos nas questões práticas, depressa esquecem ou ultrapassam esses princípios em nome de um pragmatismo que visa objectivos de curto prazo. Objectivos de curto prazo que são o derrube do governo para os dois partidos de esquerda e a conservação do poder para o partido do governo. O qual, não esqueçamos, também se reivindica dos valores da esquerda.

Compreende-se a urgência de derrubar o governo para uns e de conservar o poder para o outro. O que já não se compreende é que haja acordos, explícitos ou tácitos, com partidos de direita, para uma ou outra coisa. Onde ficam então os tais bonitos princípios anunciados? Teoria e praxis têm de estar em consonância, sem o que ambas perdem a razão de ser. Mudar a vida e transformar o mundo? Nem tal coisa lhes passa pela cabeça. Dos partidos e movimentos da esquerda extra parlamentar dir-se-ia que, na sua maioria, são memórias, reminiscências do período revolucionário e ligados a doutrinários como Trotsky, Enver Hodja, Mao Tse Tung, etc.. Estão fora do contexto histórico, social e político em que vivemos. Não me parece que passe por eles a saída do labirinto, do bloqueio que nos aprisiona.

Porquê? Por que motivo a prática dos partidos, marxistas ou socialistas, obedece a um pragmatismo que atropela princípios básicos daquilo que se entende por política de esquerda? Porque esses princípios muitas vezes não são compatíveis com a ânsia de obtenção de votos e constituem empecilho ao seu funcionamento. Há uma graça antiga que diz .”Se a bebida te prejudica o trabalho, não hesites – deixa de trabalhar!” . Neste caso, dir-se-ia “se os teus objectivos são incompatíveis com teus os princípios, não hesites – esquece os princípios!” .

Quando digo que compreendo a urgência de fazer cair este governo, dito socialista, compreendo mesmo. Estamos bloqueados num lodaçal de corrupção, de clientelismo, de nepotismo, de negociatas obscuras. É preciso sair deste bloqueio. No entanto, quando digo sair, falo mesmo de erradicar todas estas doenças que afectam a nossa democracia. Que a afectam ao ponto de termos de pensar duas vezes antes de continuarmos a designá-la por esse nome. O que estão a fazer, partidos e sindicatos que se opõem ao actual governo não é isso. O que se está a fazer é a desgastar a credibilidade deste governo (embora me pareça difícil desgastar algo que já não existe), e substituí-lo por outro que, com outras pessoas é certo, continuará na mesma senda de desonestidade, desbaratamento do erário público, favorecimentos ilícitos, corrupção desbragada…

Ninguém me venha dizer que com o PSD as coisas vão melhorar. Isso já não seria ingenuidade, nem memória curta. O termo apropriado é outro e não é agradável. Por outro lado, a dar-se essa mudança, enquanto o PSD se afunda em novos escândalos, o PS, na oposição, levanta lebres, ataca, reabilita-se e aí o termos recauchutado nas eleições seguintes. E assim sucessivamente. Não me venham os senhores do Partido Comunista, do Bloco de Esquerda, da Intersindical, dizer que fazer cair o governo é um objectivo primordial, que essa é a principal tarefa da esquerda. A tarefa da esquerda, se existisse, seria a de derrubar este sistema bipartidário, a de romper este círculo vicioso, este circo corrupto e infernal em que encontramos encerrados.

O que é prioritário é lutar pela criação de uma sociedade livre de corrupção e de oportunismo. Lutar contra o PS, claro, mas sem esquecer que o PSD é um gémeo e que substituir um pelo outro é nada mudar. Ambos, têm de ser combatidos em bloco como se fossem um só (e para muitos efeitos, são-no). Quem define como prioritária a queda do PS, visa a perpetuação do sistema. Derrubar Sócrates, sim. Substituí-lo por Pedro Passos Coelho? Para quê?

E mais: começa para muitos a ser evidente (para outros sempre o foi) que esta esquerda faz parte integrante do sistema. De que viveriam políticos e sindicalistas de esquerda se não houvesse partidos «socialistas» e «social-democratas» a fornecer-lhe abundante matéria-prima para a sua actividade? O que seria dos cangalheiros se ninguém morresse? Esquerda precisa-se - a que temos está boa para o Museu da Madame Tussaud.

Para muita gente constituirá um mistério por que motivo, pessoas como eu, com idade para ter juízo, ainda perdem tempo a lutar com moinhos de vento.

Respondo-lhes, em meu nome e dos que como eu não deixam de protestar, mesmo quando, como é o caso, isso parece inútil, com palavras de um poeta, do Egito Gonçalves, nas suas «Notícias do Bloqueio»:

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

19 comentários:

  1. Na mouche! Por isso eu digo, deixem-se de filosofias e façam o que já provou, o que é melhor, onde se vive melhor,com mais justiça.

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  2. Não me devo ter explicado bem, Luís. Ou então não leste. Senão, não podias estar de acordo e propor como solução aquilo que denuncio como problema - os "democratas" que estão à frente dos partidos do poder e o nojo de "democracia" que produzem.

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  3. Não é isso que eu digo. O que eu digo é que há países onde se vive melhor e que são mais justos. Se não conseguimos,ainda,o que preconizas, ao menos façamos o que há de melhor no terreno.Ou não vale a pena a diferença entre os países nórdicos e esta choldra?

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  4. Lutar por uma sociedade livre de corrupção e oportunismo,solidária,não mercantilista, onde não haja exploração, em que o bem seja o de todos e não o individual, estamos de acordo.Mas não é a esquerda que temos, a que temos vive comodamente à sombra do estado e vomita uns pricipios "bonzinhos"...

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  5. Sim, a esquerda, de uma forma geral, não existe (foi isso que eu disse). Porém, o modelo de uma verdadeira esquerda que lutasse pela mudança da vida, dos valores que a regem, e pela transformação do mundo, não estaria nunca na Suécia. Olof Palme, Marx e Rimbaud, são personagens de histórias diferentes. Portanto, Luís, estamos a falar de coisas diferentes e detestamos ambos este «socialismo» por razões muitíssimo diferentes. O que não me impede de, com o Mediterrâneo como pano de fundo, te enviar um abraço.

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  6. É tudo muito bonito mas... primeiro temos que nos assumir como país laico

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  7. Carlos, estás de férias, espero que bem. Mas vens agitar as minhas! Não sei o que fazer com - o segredo das torres que nos erguem - de que fala o Egipto Gomçalves. Não quero ficar no Museu da Madame Tussaud, quero continuar nessa esquerda que descreves.Creio que no meu dia a dia o sou, mas não chega... E todos os dias me questiono, me inquieto. Nem de férias, gozando a paz das barragens do Zezere me consigo sentir completamente liberta, feliz com a paz que tenho. Mas só eu tenho. Neste momento. E depois? Beijos para ti e a Helena.

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  8. É o que eu digo, tu mantens a utopia bem viva, eu já me ficava por um país onde não houvesse 20% de pobres.Abraço com o Tejo lá ao fundo!:-)e sem submarinos...

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  9. É uma discussão complicada esta, entre duas concepções do mundo e, claro, da democracia. As palavras assumem significados diferentes. Não pretendo ter a última palavra, só faço este comentário para agradecer à Clara os votos de boas férias e retribuir-lhe esses votos. Eu estou bem. Luís, isto não vai lá com slogans (nem com os meus nem com os teus). Uma discussão séria, permitia-nos aprofundar e tornar mais nítidas as diferenças, nunca para chegarmos a acordo. Partimos de pressupostos diferentes. Um abraço, Luís.

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  10. Só uma coisa de que me esqueci - a leitura atenta do Boaventura Sousa Santos, ajudava. Agora, eu aceito-o como árbitro.

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  11. Eu li o Boaventura, e muitos dos conceitos que tu perfilhas e que são o futuro, estão lá em contraponto com as que eu acho que são as melhores hoje.Ele,por exemplo, considera a democracia social democrata, como uma faceta avançada do capitalismo.Segundo julgo ter interpretado.Mas é o que dizes, a conversar é que nos vamos entendendo.Abraço

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  12. Subscrevo inteiramente este texto, Carlos. Mas crês que ainda faz sentido falar em "esquerda" e "direita", quando estes conceitos se esvaziaram de tal modo nos últimos anos? Não lanço a pergunta como uma picadela irónica, mas sim como uma honesta interrogação. Será que ainda faz sentido esta divisão?

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  13. De algumas coisas tenho a certeza. O capitalismo não é, longe disso,a faze última da evolução do homem.Não é! Mas não sei se não temos que passar pelas diversas fazes.Outra coisa são os instrumentos da evolução e aí há diferenças na esquerda e na direita.Quanto aos objectivos últimos pelo que sei da maioria de vós quer o mesmo que eu. Um mundo sem injustiça,pacífico, solidário. Como é que se chegue lá? Aí é que está a questão.

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  14. Um mundo sem injustiça, pacifico, solidário” não se chega lá dizendo ámen a tudo, a todos. Temos que começar a pensar pela nossa própria cabeça, sentir o que nos diz o coração, saber ouvir para além de homilias, discursos, palestras... até podemos deixar crescer o trigo e o joio mas ... acima de tudo é urgente identificar o falso trigo, colhê-lo, prendê-lo em celeiros-submarinos (já chegou um) e afundá-lo

    Que os bons não estão exactamente e só do lado da igreja católica, dos partidos do centro, de direita... Que os bons não são exactamente e só os que batem com a mão no peito....

    É meu costume andar por Lisboa. Agora em tempo de verão e férias escolares sou mais noctívaga. Lá estão os mesmos Jesus(es) deitados nos mesmos sítios quer faça sol, chuva, frio, calor, à luz do dia ou ao luar. Nas ruas da baixa “tropeçamos” Nele a cada esquina. ... agora com todos os trigos a banhos (Dezembro já está próximo e vão multiplicar-se jantares, chás, solidariedades ....) graças a Deus que existe o “joio” porque esse é solidário, pacifico, justo e ... não teme batalhas

    [...]
    Imagine there's no countries
    It isn't hard to do
    Nothing to kill or die for
    And no religion too

    Imagine all the people
    Living life in peace

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  15. um dia fui militante, e só poderia ter sido militante de esquerda - porque nesse lugar encontrei pessoas que SONHAVAM como eu num mundo mais justo. E porque se acreditava que o SONHO era possível e quase científico.
    Perdi esse espaço de pertença, porque perderam-se as pessoas entre vontades, desejos esquecidos que foram os príncipios.
    Falta uma alternativa que me faça de acreditar que o sonho é possível.

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  16. Só respondo agora às senhoras. A propósito, já repararam que há falta de mulheres neste blogue? (honi soit qui mal y pense). Carla, sê bem aparecida! O aviador irlandês lá te trouxe. Para ser franco não confio num irlandês que combate pelos ingleses - é uma espécie de Puyol que, catalão, ajuda o estado espanhol a ser campeão. Há esquerda e há direita - as fronteiras deslocaram-se, mas existem. Há gente de direita nos partidos de esquerda, concbidos segundo parâmetros que já não são os actuais. Isto dá para um amplo e interessante debate. Um beijinho Carla. Maria, o Imagine, de Lenon, é uma boa achega - utopia em estado puro. Ethel, a alternativa tem de ser criada. Nem que seja pela negativa. Recusando isto que nos querem impingir como democracia.

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  17. Viva! Um texto com 16 comentários! ´Não é por acaso que este tema tocou vários dos leitores e os levou a escrever. O presente, o presente, o presente. O nosso - fruto do passado, com erros, com utopias - e o dos mais novos que ainda o vão viver mais do que nós... De que estamos à espera?

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  18. António Gomes Marques5 de agosto de 2010 às 23:54

    Tenho de me juntar aos 16.
    A sonhar continuamos, como continuamos a chamar o Marx (quanto ao Engels, não gosto de o invocar por me parecer muito mais próximo dos Partidos Comunistas que existiram nos países de Leste e do PCP)sempre que falamos da sociedade que sempre quisemos ver construída, que por ela arriscámos antes do 25 de Abril e que, dentro da liberdade que esta democracia em que vivemos nos permite,por ela continuamos a arriscar, ou seja, não nos queremos misturar com os actuais partidos, com representação parlamentar ou não, nem com os medíocres políticos que vão ocupando o aparelho do Estado, continuando nós de mãos limpas (será que Sartre tinha razão?), o que ostentamos com orgulho. Entretanto, esquecemos que não vamos lá por palavras que tranquilizam a nossa consciência.
    Nunca fui homem de partido, na concepção que de partido se tem vulgarmente, mas acabei por ingressar no PS, atrás do Jorge Sampaio (sou um dos 70 da reunião de Coimbra), mas continuando sempre independente, ou seja, a conduzir-me pela minha cabeça, chegando à conclusão de que ser fiel aos valores por que sempre tentei conduzir-me me vão isolando cada vez mais, sentindo que é mais a amizade por algumas pessoas que ali me mantém, amizade esta que também vai sentindo que os amigos que dela fazem parte são cada vez menos por alguns deles terem já sido conquistados pelo aparelho.
    O comentário já vai longo e, para dizer tudo o que sinto, muito mais longo ele teria de ser. Como eu compreendo os «Vencidos da Vida», mas, PORRA, eu não quero ser um vencido da vida, quero, isso sim, contribuir para um mundo melhor, um mundo solidário que será possível apenas quando formos capazes de construir uma sociedade com igualdade de oportunidades para todos, onde a verdade seja uma busca constante, de verdade em verdade, em que nos não seja imposta uma, onde a vida se construa no respeito por valores, pelo outro e pela diferença, que nos ajude a compreender que a actividade humana tem que ser tomada como actividade objectiva no sentido em que não seja apenas capaz de intervir no real mas também de o transformar como nos ensinou Marx (estou a repetir o que disse no texto sobre o Teatro Moderno de Lisboa).
    Mas, queridos amigos, como vamos levar todos estes nossos desejos à prática? Este é que me parece ser o problema e eu, como homem de dúvida em dúvida, pergunto: somos capazes? queremos mesmo isso ou descansamos as nossas consciências dizendo-o apenas?
    Que fazer?

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  19. António Gomes Marques6 de agosto de 2010 às 00:18

    Pensei-o e não o escrevi, verifico agora ao reler o meu comentário. Falo da democracia em que vivemos agora, mas a designação de democracia não fica nada bem ao que temos em Portugal. Temos, isso sim, uma sociedade corporativa, com designações de Ordem X, Ordem Y, Sindicato de Z, etc. etc. Como Salazar se deve rir lá na cova onde o depositaram! (que espero seja bem funda e que a terra lhe seja bem pesada).

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