Adão Cruz
(Uma achega ao magnífico texto de Carlos Loures)
Eu não sei o que é a poesia, penso que ninguém sabe verdadeiramente o que é a poesia, e duvido muito de quem diz que sabe. Desde a depuração absoluta da palavra à Respiração de Deus, já ouvi todas as definições. No entanto, penso que a poesia é um sentimento como outro qualquer. Por isso, em vez de poesia, prefiro chamar-lhe sentimento poético, como em vez de arte, prefiro dizer sentimento artístico. O sentimento poético é um sentimento como o sentimento do amor, como o sentimento da alegria, como o sentimento da tristeza. Parece-me, contudo, ser um sentimento muito subtil, quase mágico, provavelmente de uma neuronalidade muito delicada, uma espécie de musicalidade, uma essencialidade rítmica e harmoniosa que existe dentro de nós e nos permite, quando permite, a mais nobre e sublime expressão da realidade das coisas e da vida.
Penso, ainda, e parece haver estudos psicológicos, sociológicos e neurobiológicos que o comprovam, que o sentimento poético e o sentimento artístico enriquecem e enobrecem todos os nossos processos de humanização, criam grandes afinidades com a consciência, aproximam-nos de todos os mecanismos de identificação com a verdade, afinam todas as outras emoções e sentimentos, ajudam-nos no caminho do equilíbrio e da harmonia, e até da justiça, ou não devesse ser a justiça a convergência ao mais elevado nível, do equilíbrio e da harmonia.
E mais penso que, muitas vezes, o que andamos para aqui a fazer não tem nada a ver com poesia. Fazer poesia, ou melhor, pesquisar a poesia como eu gosto mais de dizer, é sentirmo-nos como uma espécie de garimpeiros da poesia. Todos sabemos que os garimpeiros são aqueles homens que, nas margens dos rios das regiões auríferas, passam dias, semanas, meses e anos, a lavar pedras e cascalho, a ver se encontram umas pepitas de ouro. Nós, os que nos consideramos pesquisadores de poesia, passamos os dias a lavar o cascalho das palavras a ver se encontramos algumas pepitas de poesia, o que nem sempre acontece. Com a agravante de que há ouro verdadeiro e ouro falso, nem sempre fáceis de distinguir.
E penso, ainda, que a poesia percorre transversalmente qualquer forma de expressão artística, seja o poema, sua matriz natural, seja a pintura, seja a música. E qualquer forma de expressão artística só é arte, se contiver dentro de si a essência poética. Arte e poesia são irmãs gémeas, não podendo viver uma sem a outra.
Penso ainda, e é mais a este ponto que eu quero chegar, que a poesia, pela sua natureza intimista, é para ser lida a sós, no mais recatado silêncio. Eu não sou grande adepto da poesia lida, dita ou declamada. Reconheço, talvez, algum carácter de excepção no que respeita à poesia chamada de intervenção. De resto, penso que é um tanto caricato andar a ler poesia à mesa dos cafés, poesia no eléctrico ou poesia nas feiras, como é moda ultimamente. Peço desculpa a quem tem uma opinião diferente da minha, mas o mal não está em ter opiniões, mas em não as ter. Eu passo a explicar porque assim penso.
Quando um autor faz um poema, cria-o com toda a sua vida, através de toda a sua estrutura vivencial, com todas as suas emoções e sentimentos, as suas paixões e frustrações, as suas memorizações, a sua cultura, a sua visão do mundo e das coisas. Quem vai ler esse poema não vai ler o poema do autor, mas o seu próprio poema, dado que vai lê-lo com a sua vida, com a sua estrutura anímica e vivencial, através das suas emoções e sentimentos, através das suas paixões e frustrações, deitando mão da sua cultura própria e da sua visão do mundo e das coisas, que podem nada ter a ver com a vida do autor. O poema do autor constitui apenas o estímulo, mais profundo ou menos profundo, mais poderoso ou menos poderoso, que consegue arrancar um novo poema do íntimo de quem lê. Ninguém vê com os nossos olhos, ninguém sente com o nosso íntimo e ninguém pensa com o nosso pensamento.
Suponhamos agora que uma pessoa, que podemos considerar terceira pessoa, resolve ler o poema em público, fazer uma espécie de interpretação colectiva do poema, podendo até escorregar para uma certa aberrância, especialmente se eu não me identifico minimamente com a pessoa, se não me identifico com a sua postura, com a sua linguagem gestual, com a sua voz, com a sua forma de dizer e de interpretar, então aquilo que ouvimos pode não passar do esqueleto do poema, dos andaimes do poema, ou para utilizar a metáfora referida atrás, do cascalho das palavras, porque nestas andanças, a essência poética, as tais pepitas de ouro, podem já ter-se perdido pelo caminho.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
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Meu pai ontem dizia que a poesia é uma viagem a outro planeta, onde pelo caminho nos encontramos... Entre risos (ele brinca sempre) tocou o cerne - esse lugar breve de lucidez que o poeta alcança. Estou com o Adão porque poeta também, é quem lê e toma conta da obra do outro. Quando a reinventa e alcança o ser, é novamente poeta. Quem lê em voz alta a poesia alheia, chora por dentro, pois acredito jamais ser possível entoar como se lê, um poema.
ResponderEliminarO Adão tem aqui um texto soberbo.Pesia pura. Eu tenho dois momentos que lhe dão razão. Como já aqui aflorei, quando leitor de Cesário Verde, sentia de tal forma a sua melancolia, que comecei a recear pela minha própria vida. É que eu era um jovem cheio de saúde e ele fora um um ser que não chegou a ter, sequer, juventude! Outra vez tive oportunidade de ouvir Eugénio de Andrade, ele próŕio a ler a sua própria poesia. Começou por dizer " não batam palmas que o poeta não gosta" e caminhava de um lado ao outro com um grosso sobretudo a cair-lhe dos ombros como faziam os poetas Russos, perdidos de alcool e de doenças. Nunca mais me apanham a ouvir um "diseur "...o que eu leio não é o que eles dizem, embora o poema possa ser o mesmo! Abraço Adão!
ResponderEliminarPois eu não quero dizer mais nada do que: Que belo texto, um profundo sentir, um belo acorde musical, um poema. Um texto de ouro.
ResponderEliminarConheci muito bem Eugénio de Andrade. Aliás privei com ele. Foi ele que me ajudou a compor e organizar o meu primeiro livro de poesia " Esta água que aqui vem dar". Mas isso não me impede de dizer que eu, mesmo assim, não gostava de o ouvir ler os seus próprios poemas.
ResponderEliminarObrigado Augusta. Também sinto o teu comentátio como um poema. Um beijinho
ResponderEliminarPoesia é literatura, às vezes boa às vezes má; mais vezes a segunda que a primeira mas é preciso quantidade para encontrar qualidade.
ResponderEliminarSou mais de prosa.