sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O crescimento das crianças

Raúl Iturra

B - Pilar




      Hermínio, Julho de 2010

Hermínio corria a cavalo. Como já o tinha dito. Corria. Corria rápido. Corria rápido para fazer barulho. Barulho nas pedras da rua. Da rua do lugar de Vilatuxe, em Vilatuxe. De Vilatuxe a Gondoriz Pequeno, a casa do lar familiar. Corria no seu cavalo por cima dos seus vinte anos. Para Esperanza poder ouvir. Poder palpitar. Poder pisar a raiva do seu peito. Peito do Hermínio, que desde os três anos de idade, corria a cavalo. Corria o seu pai. O José António, o senhor da metade de Vilatuxe, porque a outra metade era do seu irmão José (Genealogia 6). De Vilatuxe Paroquia, de Vilatuxe lugar, de Gondoriz Pequeno, de Gondoriz Grande. Dos Carvalhinhos. De outros sítios. José António era um monárquico, no tempo dos debates entre república e Monarquia, a seguir a primeira República do Estado Espanhol, em 1870. Hermínio gostava de ouvir esse pai. Pai que gostava dos cavalos e que pouco ou nada fazia que não fosse tomar conta deles. Cavalo entre os quais Hermínio cresceu e foi criado. Os cavalos que o seu pai usou até a idade da morte. E que o meu amigo, usa na juventude dos seus 70 anos, enquanto ensina um neto, Isaías, a ser senhor dos cavalos. A forte ideia de Hermínio foi sempre a de dominar a natureza, de semear, de reproduzir cabras e ovelhas e cavalos. Em pequeno, foi levado a casa da avó materna, Manuela Canda. Uma outra proprietária de Gondoriz, mas de Gondoriz Grande, com terras ao sul da Paroquia, quanto que as dos Medela ficavam ao norte, disseminadas por vários sítios.




O lembrado minifúndio galego, do qual tantos temos falado (Beiras 1968, Iturra 1979 e 1998, Vilares, 1982ª, Cardesín 1992) e que tanto deu para falar. Muita terra, mas pouco dinheiro das vendas de cereais, batatas, milho, leite. Os senhores recebiam pagos em produtos, de outras casas as quais eles alugavam as terras em enfiteuses ou contrato pela vida de três gerações. Ou alugavam por tempo certo. Hermínio ficou habituado a ser filho de senhores, mas de senhores que não tinham o dinheiro suficiente para poder entrar no mercado que a Europa estava a abrir. Com uma agricultura como a Holandesa, ou da França, ou mesmo da Castela, que ganhava em exportações a uma Galiza que estava fechada e que circulava bens em praças e feiras. Hermínio, entre o seu nascimento e o de a sua irmã Marcelina, teve a experiência de ter ao pai José António na emigração, em procura de dinheiro. E, a partir do seu nascimento, estiveram oito anos em casa da referida avó materna, Manuela Canda, agora senhora de Carrefeito, Paroquia de Lebozán, onde casara. Hermínio foi criado pela avó e pelo filho de ela, o Padre Balbino, um frade muito rígido e disciplinado. Enquanto os seus pais andava pelos Estados Unidos, e a mãe pelo Uruguai, Montevideu, a fazerem dinheiro em trabalhos comerciais. E é aí onde aprende de cavalos e de tomar conta deles, até regressar a casa, a volta dos pais. O próprio Hermínio vai a Escola de lugar de Carvalhinhos, sem saber uma letra antes: de agricultura, muito, de letras, nada. Ainda que em casa, houvesse um letrado, ainda que em casa as pessoas todas fossem letradas e descendentes de letrados. O próprio Hermínio trabalha a terra e não é letrado como os seus pais, avos e tios, porque a época não era propícia. Lentamente, o seu sistema social estava a declinar. Teve que confrontar, a seguir o seu nascimento, a abolição dos direitos de foro ou enfiteuses, e perder as terras pelas quais os seus pais foram demandados. A crise do ano de 1929 que afecta ao Estado Espanhol, como a todo o mundo ocidental, acaba com os direitos senhoriais, a Monarquia, estabelece a II República, e suporta a guerra civil, que em Vilatuxe é vivida calmamente. Hermínio nem tinha que ocultar as suas simpatias pessoais pela causa republicana. Havia, como ele diz, um acordo entre o Pároco desse tempo e o chefe dos republicanos, que salvou a muita pessoa de desaparecer o ser levada á tropo ou á cadeia. Ele próprio, menino, lembra e observa, e essa observação é transferida aos seus filhos, que acabam por ser pessoas de democracia, de bom contacto com os vizinhos, fosse o que for a cor dos seus pensamentos. Caracteriza a Hermínio a sua tolerância e simpatia com as pessoas. Defende as causas justas, dá liberdade as pessoas para agirem, não julga, aceita e opina em privado as pessoas o que ele pensa que deve ser feito. È verdade que corre a cavalo entre as moças, porque o sente seu dever de cavaleiro e cavalheiro, o seu desejo natural. Esse que não tem porque deixar de satisfazer como achar melhor. E não publicita o que pensa ser o seu direito privado. É o que Pilar vê e aprende. Como vê e aprende a famosa frase do pai: é a vida e é preciso aceitar. E é o que diz aos seus irmãos e sobrinhos, que têm por ele um carinho especial e tenro. Ocupado nos seus assuntos, não é por isso que larga a sua família, a que atende todos os dias. Infatigável trabalhador, cria esse espírito nos seus filhos, incute a justiça e a calma. Diz Hermínio que um dia o seu filho José de 23 anos, vem falar com ele e diz que a sua namorada está grávida. E diz que diz a Pepe, o José da língua Galega e Castelhana, que é melhor casar para evitar problemas a rapariga. Casar, se estão namorados. E Pepe diz está-lo. Hermínio oferece a casa dele para eles viverem e trazer aí ao neto. E decide alargar a casa com o próprio José, esse Pepe, um bom albañil, pedreiro em português. Que sabe que constrói para ele, para a sua mulher e para o seu descendente, que acaba por ser uma filha, Mónica. È o que Goody tem persistido em dizer (1958,1973,1976), um Grupo Doméstico. Como é em todo Vilatuxe. Que acolhe aos seus, desde que os seus façam como o patrão da casa, diz. Porque o próprio Hermínio tem que construir a sua casa, como referi no capítulo 1, porque decidir celebrar o seu matrimónio com uma camponesa. A mamã Esperanza, mãe da sua filha mais velha e grávida do próximo, que acontece ser José. Hermínio é capaz de juntar aos parentes em uma permanente entreajuda, em uma permanente tornajeira de trabalho, que tenho relatado incansavelmente a traves dos anos e em várias línguas (1977, 1979,1980, 1988, 1990,1991,1998). Uma tornajeira que divide o trabalho por especialidade e por necessidade: o cavalo dele, o de David seu vizinho e amigo, o tractor do seu sobrinho filho de irmã, António O Ferreiriño, a força de trabalho do seu cunhado Amado, irmão de Esperanza, e outros, da denominada cooperativa, com a qual tanto trabalhara eu ao longo de anos, já 26. Grupo que hoje em dia está incrementado pelos filhos casados que colaboram com os seus velhos, porque sabem agricultura, apoiam as forças decadentes, embora nenhum trabalhe, ainda que saiba, de agricultura. Pilar vê colaboração, vê reciprocidade, vê não crítica, vê carinho, vê calma com os caprichos, vê justiça no mal comportamento. Vê castigo quando corresponde. Vê uma crença que não se exibe, e uma fidelidade e respeito á família. Tem todos os dados para entender as opções. Tanto, que é até difícil viver com uma pessoa que todo sabe, que todo resolve, que é capaz de construir o contexto do problema, para resolve-lo. A pessoa ideal para procurar para os trabalhos. Como vê o papel da sua mãe, Esperanza Dobarro (Genealogia 7), filha e neta de jornaleiros sem terra, imigrados desde Ourense, outra Província Galega, a de Pontevedra, em Vilatuxe. A mãe tem que trabalhar a terra desde muito nova e tomar conta dos pais, como filha mais nova que ela é. Conforme com todo, não teve ambição especial desde nova. Diz-me um dia, enquanto falávamos, que o seu primeiro bebé estava a nascer, como fiz referência no capítulo 1, que sujeitou ao bebé até acabar o trabalho. Foi logo a casa, teve o bebé, e no dia seguinte estava outra vez a trabalhar, como sempre, com a família toda. Famílias sem terra, pedreiros, jornaleiros, sapateiros, até comprarem a pouco e pouco a terra, que hoje a eles pertence. Não tinham a facilidade de Hermínio, proprietário que perde a terra pela nova lei dos anos vinte deste século, mas que, com a sua longa permanência de cinco anos de emigrante em Venezuela. A trabalhar em indústria primeiro, em cavalos depois, poupa para investir nas tecnologias precisas na altura. A mamã Esperanza é silenciosa, fala o que o marido diz e aceita sem comentários os seus deveres domésticos. Habituada a trabalhar toda a vida, faz medo a Pilar. Medo de ver uma mulher, a sua mãe, que vive com um padrão difícil de medir, o marido dela, o seu próprio pai. Um pai que sempre quis mimar aos seus filhos, mas sem meios para o fazer. É por isso que emigra durante esses seis ou sete anos. Tempo que Esperanza e os filhos nascidos, ficam a viver com a avô paterna. Avô de muito mau humor, que diz aos pequenos que o pai o não os queria, por isso tinha emigrado. E os filhos mais velhos, Carmen, José e Olga, crescem com essa ideia na cabeça.

Pilar é que nada de isso sabe e ouve, e recebe o carinho do pai na construção da nova casa que os acolhe. O pai é uma medida pela qual ela é capaz de encontrar a o homem com o qual casa e que ocupa-se do filho, como Hermínio dos seus. Pilar é a reprodução do que o pai faz na vida. Da forma em que o pai foi feito, com pais sempre ausentes e zangados, ela não é assim criada e até pode ter o luxo de estudar música. Pilar, a filha preferida de Hermínio, que passou pela memória de todos os ciclos da Historia de Espanha, já relatados. Pilar, habituada a crianças, capaz de criar a sua, mas menos capaz do que o marido, como a sua mãe, que pouco tempo tem para os seus filhos, por se dedicar mais ao trabalho do marido e a acompanha-lo. É Esperanza quem diz um dia na cozinha, eu faço na intimidade, o que o meu marido diz e quando quer, e quando não quer, nada. É o modelo de Pilar, como diria um Freud (1920), uma Klein (1932), uma Alice Miller já citada. Especialmente Miller, capaz de analisar a vida de Hitler, Mussolini e Picasso, a partir do estudo dos seus pais, especialmente da sua mãe.


O Guernica (1937) de Picasso, seria o resultado da guerra que ele viu bem antes da guerra civil de Espanha, a com a mãe a dar a luz no meio da fugida a França. Os gritos, a casa desfeita, os animais bombardeados, são as memórias de dias tristes, que ele exprime no desenho. Como Pilar exprime o seu carinho pelos seus, na música. E na capacidade de ensinar doutrina aos outros meninos. Uma catequista de Vilatuxe, que guarda a ideia de ser livre, com todo. Sem viver oprimida ao bem e o mal, sem pensar no pecado, só agir. Agir no bem dos outros. Com as críticas necessárias as pessoas da família que não tratam dos filhos, como ela sente que foi tratada, ela e Miguel, esse irmão filho que tão cedo, para ela, chegou. Uma capacidade de construir o real e de se habituar as mudanças, retiradas do exemplo do pai e da distanciada mãe. Com um acolhimento aos outros, que sempre serei capaz de agradecer, devido a sua companhia e aprendizagem do estudo de arquivos, nos anos em que investigávamos juntos a sua genealogia e todo Galiza. A mãe e o pai foram feitos de forma diferente. A mãe, no acolhimento de um lar que tinha que trabalhar unido para poder reproduzir a vida, no esforço de todos para pagar em bens. O pai, em um lar muito dividido e pouco amados os indivíduos, dispersos pelas casas familiares. Uma mãe sem bens, que sabe optimizar a falta de eles. Um pai, de uma classe social que está a cair e desaparecer. Um comportamento de dois, diferenciado pelo contexto interactivo. Donde, o comportamento de Esperanza ganha ao de Hermínio. É Esperanza a que, em silêncio, cria a solidariedade que Hermínio anda a praticar. Mas, uma solidariedade doméstica que começa pela subordinação ao homem e o pedido as filhas a fazerem o mesmo, bem como a medida as noras de serem calmas com os maridos, os seus filhos. Pilar aprende de Esperança, a reprodução afectiva e económica da casa. E do pai, o entendimento do comportamento e a ironia. Uma herança dupla, como a de Victoria, de uma correlação emotiva de dois seres feitos por conjunturas históricas diferentes e contraditórias. A de Hermínio, classe senhorial, a mandar. A de Esperanza, classe de serviço, a obedecer. A se dar aos outros, enquanto Hermínio espera dos outros. É mais uma contradição sintética na herança de Pilar. Seja qual for a sua classe, é homem, e na Galiza, patriarcal, são eles os mandam. Esperanza é mulher, que na Galiza, serve. Mais outra ainda, a de uma Lusitanidade introduzida por Afonso Henriques de Portugal, no século XII do presente milénio que acabou para passar ao segundo. Uma Galiza, reino autónomo e com ideias e cultura celta, sueva e visigótica, animista, como a de Victoria e os seus Picunche. Que vêem reforçados os elementos cristãos suevos, como o catolicismo castelhano de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, e primeiro rei português da Galiza. Factos da historia, que aparecem na herança de Pilar, entre a autonomia galaica da mulher e a sua igualdade com o homem, e a subordinação católica franco - castelhana dos lusitanos que os invadem com comportamentos, até o dia de hoje. Comportamento luso galaico reforçado na luta contra Castela, mais importante que a luta já morta, contra o condado Portucalense do dito Afonso Henriques. É por isso que Pilar e os seus pares, lêem Castelão e Rosália de Castro. E falam uma combinatória de duas línguas, feita hoje só uma, o luso-galego que me parece, por causa de vida real, se mais bem um luso-castelhano, a formosa língua galega. É a herança de Pilar, dos seus irmãos, dos seus pares, mais ainda, do que nunca foi dos seus pais e ascendentes. Lutavam pela terra: para a ganhar, para a não perder, conforme. Com as novas leis da União Europeia que retira do direito à propriedade, a todos os reprodutores não capazes de reproduzir. As preocupações têm-se diversificado e só um mínimo deles, ficam interessados na terra, enquanto uma grande maioria, fica preocupado das habilitações, do saber e dos lucros. É assim que era Pilar quando não era. Na Historia. Na memória social. Só um projecto reprodutivo. É assim que foi feita, assim que existe, assim a sua herança, contraditória como a de Victoria, sintetizada por ela no seu saber ao longo do tempo. Como fazem os seus irmãos e pares do seu tempo. É assim Pilar. Como eram os seus ancestrais que a fizeram. Como os seus pais, como ela própria, como os seus ancestrais. Do que vamos falar depois. Porque agora interessa entender que a existência da criançada crescida, é a coordenação de informação transferida em curto espaço de tempo, para situações diferentes. É só entre os começos do Século XVIII e do dia de hoje, que a Galiza está a se reformular sistematicamente, entre Monarquias absolutas, constitucionais, duas repúblicas, duas guerras, uma ditadura, uma democracia, uma construção de uma sociedade mais igual. Como Victoria, que vive o que os seus pais não viveram e toca aos filhos e netos fazer. Mas, insisto, do qual vamos falar depois, para ver como é Anabela e os seus que a fizeram. Como Victoria e Pilar, esse dois dos três elos que me ligam a etnografia e etnologia de meu trabalho de campo dos últimos três anos.

Sem comentários:

Enviar um comentário