quarta-feira, 18 de agosto de 2010

À morte de um amigo

Adão Cruz


Apenas dois raios da frouxa luz do crepúsculo penetram na janela e atravessam a sala, bordejando timidamente a penumbra e tocando de leve brilho os sapatos negros.

No além do quarto, para lá da porta, a densa quietude da paz e do silêncio.

Sobre a cama um corpo sem dobras, estendido de cima a baixo.

Nem uma vela nem uma flor nem uma renda.

O mesmo leito onde dormiu os sonos temporários.

O mesmo leito onde o sono temporário se fez definitivo.

A nudez física, de singelo pudor enfiada num longo e magro fato preto.

A nudez da vida, despida de mentira, vaidades e impurezas.

A nudez da morte, limpa de crenças e fantasias.

A nudez da vida e da morte abraçadas, por fim, no esquálido encontro de um corpo que foi gente.

Gente que a gente não gosta de ver partir, por ser rara.

Por ser um verso do Universo, ou simples protão, mas daqueles que deixam na sua órbita um rasto de luz e dignidade.

4 comentários:

  1. Tristeza bem sentida,Adão. O quadro e o poema são de um despojamento total.Abraço

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  2. Obeigadíssimo Luís, este poema é, de facto, sentido. Foi feito a um grande amigo, o Dr. Renato Figueiredo, Director da Biblioteca municipal de S.João da Madeira, homem vertical, de grande dignidade, despido de todas as impurezas deste mundo.

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  3. É um poema que impressiona pelo despojamento que a amizade sentida permite perante o vazio deixado pela morte. Mas é o tempo posterior que dará cada vez mais força a esses sentimentos que continuarão connosco em companhia. Gostei muito.

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