Manuela Degerine
Manuela Degerine
Capítulo LXXV
Décima oitava etapa: em Ponte de Lima (continuação II)
Acumulámos tamanho peso de vitualhas que a hipótese de procurar outra refeição fica excluída. Voltamos para o albergue. O sol põe-se entre nuvens, um céu luminoso e ameaçador: paramos para admirar. Choverá amanhã, não choverá, muito, pouco, nada... Eis o tema da nossa meditação. Eu aprecio a chuva que, para além de tantas virtudes, afasta o risco dos incêndios – excepto quando chove a tanques durante todo um dia de caminhada. Uma chuvada, sim, tal incontinência atmosférica, não. A chuva de hoje quase deu que fazer aos meus heróis favoritos... Surge o alberguista, com uma cana, belo bordão, exclamamos nós, leve e resistente. Comprou-o para amigos que, no dia seguinte, iniciam o caminho – é o bordão dos pastores. Conversamos dali até ao albergue. Ele seguiu nove vezes o caminho de Santiago e espera segui-lo, no mínimo, outras tantas; entretanto dedica, cada dia, sem remuneração, várias horas ao albergue. Esta noite dormirão aqui mais de trinta peregrinos e, tal como a Marlene e o marido ou a família dos três cães, alguns pernoitam em pensões e hotéis; portanto, a partir de agora, seremos numerosos na Via Lusitana. Subimos à cozinha, onde encontramos as holandesas cozinhando massa com legumes, as quais se surpreendem por sermos, uma portuguesa, o outro italiano e comunicarmos em francês, não, não somos um casal, esclarecemos nós, só nos conhecemos em Vilarinho, há apenas três dias, porém logo compreendo: o que as espanta é ouvirem uma língua que sobressai da vulgata anglo-saxónica. Explico – em inglês – que embirro com o inglês portanto, um com o outro, falamos francês, para haver diversidade. Daqui em diante teremos, de vez em quando, que repetir esta justificação. Entretanto fazemos um chá, saboreamos aquele excelente pão, tão bom que até parece de hoje, com queijo (eu) ou fiambre (Sérgio). Há oito dias que como bom pão com queijos variados – e não me canso. (Portugal é nesta especialidade tão profuso como a França.) Já não é cedo, passa das dez e amanhã levantamo-nos, como é habitual, às seis horas. Vi, na sala dos computadores, um frasco de Betadine, vou ainda para lá tratar o pé esquerdo: o caminho de hoje, longo e difícil, fez-me outra bolha no dedo grande. Cubro-a com mais um compeed. Restam-me dois dedos sem bolhas nem penso. Converso com um espanhol que me exibe os dele – nus, belos, intactos, gloriosos – e confia o milagroso método: durante os dois meses que precederam a viagem, mergulhou cada dia os pés em água salgada e esfregou-os com pedra-pomes. Oiço há nove dias variações mirabolantes sobre o tema, já nada me espanta, rio-me apenas por, perante a imagem destes pezões ao lado dos meus, me lembrar da canção açoriana: ora ponha aqui, ora ponha aqui o seu pezinho, ora chegadinho, ora chegadinho, ao pé do meu... Canto-lhe a canção, conto-lhe os Açores. E, sobre os Açores, há tanto para contar... Falo aliás espanhol com agradável à-vontade. Gracias, Maria! (A minha companheira espanhola não voltou a dar notícias. Terá sido forçada a interromper a viagem?
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
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