quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo XC

Vigésima terceira etapa: de Redondela a Pontevedra (continuação)

Caminhamos por uma rua sem nada de particular, com casas de um lado e do outro, quando notamos, à nossa esquerda, um caminho de areia que conduz à beira da ria. Avistamos um banco lá em baixo: bom sítio para apreciar o panorama.

Descemos. Deixamos à direita um grupo de prédios, passamos por um pouco de erva e de lixo, numa zona arenosa, um tanto enlameada, usada para estacionar carros, o grau zero do urbanismo: as casas foram vendidas, o resto ficou como calhava. (Donde conheço eu isto?...) Chegamos ao banco. E só agora reparamos que... não está virado para a ria!

Imaginava eu que as autarquias portuguesas não tinham rival no universo obscuro do absurdo...

Nós queremos ver a enseada, sentamo-nos portanto com o peito no recosto do banco. Não é afinal mau para quem, como nós, traz dores nas costas, provocadas pelo peso da mochila. Apoiando os braços na parte superior do banco, estico a coluna vertebral – o que não deixa de ser agradável.

Há a meio da ria ilhéus com ervas verdes, à esquerda uma ponte metálica, à direita outra ponte que, vista daqui, deduzo ser a medieval, com dez arcadas, junto da qual se encontram, de um e do outro lado, pequenos barcos coloridos. As casas acompanham a margem e sobem pela encosta acima; nota-se alguma desordem urbanística que não deixa de acrescentar encanto à paisagem.

Qual o projecto da câmara quanto ao banco? Imaginamos os burocratas a congeminar. Quererão obrigar-nos a admirar os prédios ali atrás? Parece pouco provável; para além de não serem exemplares, não se viram sequer para a ria, mas para a rua na qual passávamos. Pretendem acaso mostrar um parque de estacionamento improvisado? Ajudem-se a vós próprios que a câmara não está para isso. Uma sinceridade muito louvável porém arriscada do ponto de vista eleitoral. Não, em vez de mostrar, seja o que for, tentam esconder... O quê? Torna-se logo evidente: o cano de esgoto que se encontra a dois metros do banco. Embora de lá venha um cheiro nauseabundo, devem decerto sair substâncias deliciosas, saltam-lhe centenas de peixes à frente. Mas que autarquia jamais se incomodou com canos de esgoto? E com os peregrinos de Santiago? Em Portugal, pelo que notei, os peregrinos não inspiram mais que os canos de esgoto, estes sem cor, gosto ou cheiro para a maioria das autarquias, excepto em Ponte de Lima, que acolhe os peregrinos de maneira exemplar e porventura também cuidará do meio ambiente, todavia na Galiza, tantos séculos de hospitalidade, eureka, é sem dúvida isto: uma artimanha para nos esticar a coluna vertebral. Não representará antes uma injunção aos habitantes? Moderem a contemplação, tornem-se mais produtivos, a paisagem não alimenta. Não?... Esta região deve, no passado, ter vivido, em parte, da ria e agora haverá, no mínimo, alguma actividade turística – apesar do cano de esgoto.

Estudado o problema nas suas visíveis facetas, acabamos por concluir, embora de maneira provisória, o que nos parece mais credível: trata-se de uma instalação realizada por qualquer artista galego subvencionado por um partido da oposição. (Tenho-as visto piores em sítios com mais pretensões.)

Seja como for... Este banco constituirá um dos mistérios do Caminho de Santiago.

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