domingo, 22 de agosto de 2010

O crescimento das crianças

Raúl Iturra

Capítulo 1



Tu calculas, eu observo. Saber, tempo ciclo.

Victoria olhava. Olhava e calava. Ouvia. Ouvia e não falava. Era muito pequena para entender. Ai andava o pai com a sua bebedeira. A que trazia quando aparecia em casa. Dinheiro era o que não vinha com ele. Só bebedeira. A Yeyé, como diziam á sua mãe Reneria, congeminava, pensava, procurava o que fazer. Victoria era pequena, mas antes da Victoria, havia outras três crianças mais velhas (Genealogia). Clodomiro Berrios, o pai, guiava, trabalhava no Fundo. El Almendro de Pencahue, em que visitava e ficava na casa da sua outra mulher, a Rebeca. Como é normal entre os Picunche, casar ou viver com varias mulheres ao mesmo tempo. Victoria via tanta actividade e não conseguia entender. Não era para ela entender. Eram coisas de grandes. Ela era pequena. E a mais nova. A Yeyé pensou, optou e fez uma decisão: havia muito estudante de Pencahue fora, dos fundos, que precisavam comer para irem a escola da vila. Muitos, a ficarem na vila, porque não havia transportes. E abriu a casa aos estudantes. A casa colonial, de duas águas, telhas no teto, feitas em barro e palha as paredes, pilares de madeira a assegurar o teto de telhas. Quartos largos e obscuros. Yeyé foi capaz de por camas em vários cantos dos mais largos, e fez pensão. Victoria passou a habituar-se a ter tanta gente em casa. Gostava. Duramente, Reneria, essa Yeyé, ia trabalhando para cozinhar para todos. Victoria ficava ao pé dela, ou da irmã mais velha. Via, ouvia e calava. Foi ficando na sua lembrança, a quantidade de rapaziada que pela casa passava e acarinhava os seus caracóis louros.

Em Pencahue, mesmo ao pé do fundo onde Bernardo O’Higgins, o Libertador do Chile, tinha sido criado. O fundo Quepo, nome Picunche, que o seu proprietário, o português José Albano Pereira, havia mantido. (Eyzaguirre 1983; Villalobos et at, 1974; Bengoa 1988; Lizana 1909; Barros Arana 1884-1902). Pencahue, o villorrio, agora da propriedade dos novos chilenos, assim definidos por O’Higgins em 1829 (Fonte: Eyzaguirre 1983; Arquivos Paroquiais de Pencahue). Villorrio, berço de Victoria desde 1973, e dos seus ancestrais Picunche, Espanhóis, Irlandeses, Criollos e Mestizos. Cálculos históricos que a pequena e os seus irmãos, nem sonhavam poder fazer. Porque não sabiam: eram os filhos da Yeyé e do Clodomiro, esse pai que vivia também com a Rebeca Troncoso. Como a lei Picunche manda e a dos Huinca o Chilenos, permite. Como nem pais nem filhos sabiam. As pessoas sabiam que os homens viviam com outras mulheres também e tinham irmãos nascidos das outras. Que eram irmãos amados, como a catequeses manda, como as mulheres dizem. Como o Picunche Castillo de Pencahue, conta.

Como conta Herminio de Vilatuxe, na Galiza, de que era neto de um Cura. Historia que faz rir a Pilar, essa mulher que, em pequena, faz já vinte e cinco anos, (Iturra 1979 e 1980) estudava também na catequese, de que os curas não casavam nem tinham filhos. Mas, Herminio, o seu pai, achava divertido e digno de eu saber. Esse Herminio que nunca entendeu, em criança dos anos trinta deste século XX, porque é que os vizinhos da Paroquia traziam tanto produto á casa deles, produto que depois saía para a Casa de Lemos e de Alba. Até que em 1930 em frente, já não saiam mais e ficavam em casa do pai, no canastro gigante de seu lugar de Gondoriz. Lugar de parentes casados com parentes. Lugar endogénico, dissemos em Antropologia. Nem entendia porque o seu pai, o avô de Pilar, o tinha deitado fora de casa. Pilar e o seu irmão Pepe, em pequenos, ouviam e calavam: não tinham a quem perguntar porque não sabiam o que perguntar: era o papá, era a mamã Esperanza, era a pequena casa do agora pastor de ovelhas e capador de animais, era o monte apropriado por Herminio para construir a pequena casa para Carmen, Olga, Pepe, Pilar, Miguel, a mamã Esperanza e ele próprio (Genealogia 2). Pilar soube depois, de que o avô José António, era um senhor, filho de senhores; de que o seu pai era um senhor, de que a sua mãe era filha de camponeses a pagarem rendas ao avó paterno, o dito José António. Pilar soube isso, quando deixou a música, o marido Alfonso aceitou tomar conta do filho Ezequiel, e andou nos arquivos em procura da sua genealogia. E aí soube que a bisavó do pai, Doña Jacoba, era filha, neta e bisneta do primo afastado das Casas de Lemos e de Alba, enviado pelo Duque - Conde, a tomar conta das terras da Paroquia de Vilatuxe. Pilar tinha que ver, ouvir e calar, porque nada havia para identificar, comentar e contar. A mamã Esperanza, tinha tido o seu primeiro filho enquanto batia o chão com a enxada, para recolher batatas. E tinha aguentado forte e firme: o trabalho era preciso, a criança estava a mais. Essas coisas dos adultos. Essas, do pai de Esperanza, o avó materno António Dobarro, que estava a ver a filha sem marido e grávida; e do senhor, á espera da sua parte das batatas ou patacas, como os galegos dizem. Pilar acabou por entender, vinte e cinco anos mais tarde. E a não comentar, porque ela, crescida também, já sabia como os amores eram. Eram primeiro paixão, carinho e afecto depois, objectivos em conjunto sempre. Nos seus seis anos, Pilar não entedia. Não era o seu problema; ou não era um problema para a sua capacidade de entender. Porque o seu problema, era tomar conta do Miguel, esse bebé nascido da teoria do Herminio Medela seu pai, de que cada cinco anos um filho deve nascer para os pais sempre terem ajuda em casa; o seu problema, era ler e escrever; o seu problema, era ajudar com o rebanho á chegada a casa; o seu problema era fugir das estaladas do irmão Pepe; de trazer agua para a casa; de tomar conta dos coelhos. De brincar com as primas e amigas. De ignorar as irmãs mais velhas, já a saírem de casa para casarem.

Como Anabela em Vilaruiva, que se o pai o permitir, vai um dia casar. Como casam em Portugal, na Beira Alta, bem cedo. Se um namorado quiser aparecer para a hoje professora de ciclo, cuidada pela mão do pai para estudar o seu secundário. Um pai, António Lopes (Reis 1991; Iturra 1990ª; Raposo 1991). Um António Lopes que, um dia, diz á Fernanda Rodrigues, a sua mulher: já não é bom andarmos pela aldeia, a trabalharmos de peões, tu na escola, eu nos campos dos outros. E vão para a Alemanha, entendido o câmbio favorável da moeda. E vão e deixam os filhos com a mãe da mãe, Dona Conceição Vidigueira, essa nova mãe para Anabela e o seu irmão Luís. Essa nova mãe, que ainda entende deles mais do que os pais, emigrantes que não viram crescer o quotidiano dos seus dois filhos, as doenças, as brincadeiras, os ajustes a vida, os estudos da escola, os amigos a crescerem junto a eles. A rede de interacções traçada pelos pequenos. Rede que, até hoje, serve para serem amigos. Anabela e Luís percebem a tristeza da mãe ao ir embora, a distância masculina do pai, para acalmar as suas emoções, as visitas eventuais, de um ou do outro, ou da mãe, se há uma doença mais complexa. Um Luís, hoje Gestor, casado com rapariga de fora; uma Anabela, a atender o café de dia durante anos, porque eram o Luís e o pai á noite, e a estudar enquanto o café estava mais calmo. E a aprenderem mais tarde, de que o pai não tem pai presente, emigrado fugido ao estrangeiro. Como todo Portugal pobre dos anos quarenta e cinquenta e sessenta deste século. A aprenderem a trabalhar a terra com as avôs, a tomarem conta das terras pequenas dos pais ausentes, que ião acrescentando leiras ao seu património alemão de dez anos. Um pai disciplinado em horários de trabalho, em horas de trabalho, em gastos a serem feitos, em investimentos e poupanças. Em interacção com a família e os vizinhos, a guardarem distancia para não criar o crédito, a guardarem a amizade para o consumo no pequeno supermercado, e a guardarem algumas aproximações fraternas, para se divertirem, raramente, durante o ano. Anabela observa todo e cala, porque não tem, como Victoria e Pilar, elementos para identificar e separar entre o que é bom e o que é mau. Excepto, os da disciplina do lar, sempre defendido pela avô materna, essa mãe que os criara. Victoria em Pencahue, Pilar em Vilatuxe, Anabela em Vilaruiva, têm lares abertos a todos. Mas fechado entre eles, digno, silencioso, a ver, ouvir e calar. Como Herminio, esse amigo que faz vinte e seis anos antes, me ensinara Vilatuxe enquanto tomávamos conta do gado. Como António Lopes, que me ensinara Vilaruiva faz 10 anos. Como as lembranças da Yeyé, que Victoria evocara, para eu saber como era o que é. E uma mamã Esperanza, a tomar conta do gado para substituir ao seu homem quando preciso e quando a criançada o permitia. Uma Dona Fernanda, a mexer pela casa toda para manter a vida doméstica e comercial vivas, os homens servidos, as comidas para os hóspedes, preparadas. Com a rapaziada consanguínea e amiga, ao pé, para aprender a lidar com os assuntos próprios, como tenho dito em outros textos, e como passo a pensar agora.

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