Sílvio Castro
Cesário Verde, nascido em 1855 e morto em 1886, representa um singular fenômeno no quadro geral do romantismo português. Com ele a poesia de Portugal ganha improvisamente uma modernidade desconhecida. Seus poemas, mesmo participando de uma longa tradição, rompe com os tempos e se projeta muito além de uma época pessoal, ainda que sendo principalmente fruto dela.
Filho de uma rica família de comerciantes, desde muito cedo ligou a própria existência à atividade do pai, para nela criar e desenvolver uma personalidade quase anônima, mas que cedo se projeta como uma revolução. Nasce assim um intelectual e um criador lírico que, aparentemente integrado a um ambiente burguês insuperável, de natureza mercantil, dele jamais faz parte.
A poesia de Cesário nasce no silêncio da vida que realmente não é aquela sua aparente. Mas os poemas que ele vai criando na sua curta existência lentamente o projetam num novo mundo, fantástico ainda que imediatamente real e reconhecível. Nasce com esta poesia um novo sistema de linguagem, inicialmente em contraposição a qualquer possibilidade de receptividade, mas que cedo irá desvendar a própria força no forjar diálogos e sentimentos novos.
A língua poética do poeta revolucionário é feita com a aparente sintaxe da
comunicação comum, na qual o poeta intromete a genialidade criadora de novos ritmos e de morfemas que corroem qualquer forma de indiferença e incompreensão. Novos mundos são então projetados aos que desde logo sabem penetrar na complexidade de uma nova semântica poética, na qual a metalinguagem é presença copiosa.
Partindo da tradição romântica dos sentimentos mais pessoais e da participação
serena com a natureza, o poeta cedo alarga o seu cenário sentimental ao plano urbano. A partir daí, com o surgir de uma Lisboa inédita aos ritmos poéticos portugueses e ao gosto geral de uma época, a poesia de Cesário Verde se faz revolucionária. A aparente dicção prosaica se revela fonte de invenções e de liberdade. Com ela, a receptividade se faz conquista de liberdade partecipativa.
Tudo se origina das mais profundas raízes do poeta, alimentadas de forte universalismo e de uma mágica capacidade de criar mundos inicialmente encubertos aos olhos, prontos a serem vividos na perfeita receptividade.
O sentimento do mundo do poeta é universal, ainda que sempre ligado ao seu mundo
urbano. Este se faz renovador a cada canto de uma praça ou à descoberta da gente mais simples que caminha pelas ruas pedregosas:
“ Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
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Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!
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E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!”
O mais consciente hino tradutor de “O sentimento dum ocidental” português é significativamente dedicado ao poeta que comovia Portugal com os seus gritos pela liberdade e a favor dos simples, dos humildes, dos desgraçados: Guerra Junqueiro. Como acontece com o poeta de Os Simples, a complexa e revolucionária poética de Cesário Verde é ela igualmente um canto da liberdade sempre reconhecida. Com esse canto a poesia de língua portuguesa se projeta no futuro enquanto um tempo real e concreto.
A partir da poesia de Cesário Verde o romantismo cumpre um longo percurso, atingindo o mais amplo sentido social e desde então fazendo-se uma constante no processo de evolução dos tempos criativos. Com ela estavam abertas as portas de todos os realismos.
domingo, 22 de agosto de 2010
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Quando descobri Cesário Verde descobri a poesia e que me levou depois a Pessoa, Camões, Florbela, Sofia, mas foi com Cesário que verdadeiramente me interessei.Lembro-me de andar na baixa de Lisboa e sentir o que Cesário cantava...as belas tardes cheias de melancolia...
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