6. A natureza das globalizações
A referência feita nas secções anteriores às facetas dominantes do que usualmente se designa por globalização, além de ser omissa a respeito da teoria da globalização que lhe subjaz, pode dar a ideia falsa de que a globalização é um fenómeno linear, monolítico e inequívoco. Esta ideia da globalização, apesar de falsa, é hoje prevalecente e tende a sê-lo tanto mais quanto a globalização extravasa do discurso científico para o discurso político e para a linguagem comum. Aparentemente transparente e sem complexidade, a ideia de globalização obscurece mais do que esclarece o que se passa no mundo. E o que obscurece ou oculta é, quando visto de outra perspectiva, tão importante que a transparência e simplicidade da ideia de globalização, longe de serem inocentes, devem ser considerados dispositivos ideológicos e políticos dotados de intencionalidades específicas. Duas dessas intencionalidades devem ser salientadas.
A primeira é o que designo por falácia do determinismo. Consiste na inculcação da ideia de que a globalização é um processo espontâneo, automático, inelutável e irreversível que se intensifica e avança segundo uma lógica e uma dinâmica próprias suficientemente fortes para se imporem a qualquer interferência externa. Nesta falácia incorrem não só os embaixadores da globalização como os estudiosos mais circunspectos. Entre estes últimos, saliento Manuel Castells para quem a globalização é o resultado inelutável da revolução nas tecnologias da informação. Segundo ele, a "nova economia é informacional porque a produtividade e competitividade assentam na capacidade para gerar e aplicar eficientemente informação baseada em conhecimento" e é global porque as actividades centrais da produção, da distribuição e do consumo são organizadas à escala mundial (1996: 66). A falácia consiste em transformar as causas da globalização em efeitos da globalização. A globalização resulta, de facto, de um conjunto de decisões políticas identificadas no tempo e na autoria. O Consenso de Washington é uma decisão política dos Estados centrais como são políticas as decisões dos Estados que o adoptaram com mais ou menos autonomia, com mais ou menos selectividade. Não podemos esquecer que, em grande medida, e sobretudo ao nível económico e político, a globalização hegemónica é um produto de decisões dos Estados nacionais. A desregulamentação da economia, por exemplo, tem sido um acto eminentemente político. A prova disso mesmo está na diversidade das respostas dos Estados nacionais às pressões políticas decorrentes do Consenso de Washington.[8] O facto de as decisões políticas terem sido, em geral, convergentes, tomadas durante um período de tempo curto, e de muitos Estados não terem tido alternativa para decidirem de modo diferente, não elimina o carácter político das decisões, apenas desloca o centro e o processo político destas. Igualmente política é reflexão sobre as novas formas de Estado que estão a emergir em resultado da globalização, sobre a nova distribuição política entre práticas nacionais, práticas internacionais e práticas globais, sobre o novo formato das políticas públicas em face da crescente complexidade das questões sociais, ambientais e de redistribuição.
A segunda intencionalidade política do carácter não-político da globalização é a falácia do desaparecimento do Sul. Nos termos desta falácia as relações Norte/Sul nunca constituíram um verdadeiro conflito, mas durante muito tempo os dois pólos das relações foram facilmente identificáveis, já que o Norte produzia produtos manufacturados, enquanto o Sul fornecia matérias primas. A situação começou-se a alterar na década de sessenta (deram conta disso as teorias da dependência ou do desenvolvimento dependente) e transformou-se radicalmente a partir da década de oitenta. Hoje, quer ao nível financeiro, quer ao nível da produção, quer ainda ao nível do consumo, o mundo está integrado numa economia global onde, perante a multiplicidade de interdependências, deixou de fazer sentido distinguir entre Norte e Sul e, aliás, igualmente entre centro, periferia e semiperiferia do sistema mundial. Quanto mais triunfalista é a concepção da globalização menor é a visibilidade do Sul ou das hierarquias do sistema mundial. A ideia é que a globalização está a ter um impacto uniforme em todas as regiões do mundo e em todos os sectores de actividade e que os seus arquitectos, as empresas multinacionais, são infinitamente inovadoras e têm capacidade organizativa suficiente para transformar a nova economia global numa oportunidade sem precedentes.
Mesmo os autores que reconhecem que a globalização é altamente selectiva, produz assimetrias e tem uma geometria variável, tendem a pensar que ela desestruturou as hierarquias da economia mundial anterior. É de novo o caso de Castells para quem a globalização pôs fim à ideia de "Sul" e mesmo à ideia de "Terceiro Mundo", na medida em que é cada vez maior a diferenciação entre países e no interior de países, entre regiões (1996: 92, 112). Segundo ele, a novíssima divisão internacional do trabalho não ocorre entre países, mas entre agentes económicos e entre posições distintas na economia global que competem globalmente, usando a infraestrutura tecnológica da economia informacional e a estrutura organizacional de redes e fluxos (1996: 147). Neste sentido, deixa igualmente de fazer sentido a distinção entre centro, periferia e semiperiferia no sistema mundial. A nova economia é uma economia global distinta da economia-mundo. Enquanto esta última assentava na acumulação de capital, obtida em todo o mundo, a economia global tem a capacidade para funcionar como uma unidade em tempo real e à escala planetária (1996: 92).
Sem querer minimizar a importância das transformações em curso, penso, no entanto, que Castells leva longe demais a imagem da globalização como o bulldozer avassalador contra o qual não há resistência possível, pelo menos a nível económico. E com isso leva longe de mais a ideia da segmentação dos processos de inclusão/exclusão que estão a ocorrer. Em primeiro lugar, é o próprio Castells quem reconhece que os processos de exclusão podem atingir um continente por inteiro (África) e dominar inteiramente sobre os processos de inclusão num subcontinente (a América Latina) (1996: 115-136). Em segundo lugar, mesmo admitindo que a economia global deixou de necessitar dos espaços geo-políticos nacionais para se reproduzir, a verdade é que a dívida externa continua a ser contabilizada e cobrada ao nível de países e é por via dela e da financeirização do sistema económico que os países pobres do mundo se transformaram, a partir da década de oitenta, em contribuintes líquidos para a riqueza dos países ricos. Em terceiro lugar, ao contrário do que se pode depreender do quadro traçado por Castells, a convergência entre países na economia global é tão significativa quanto a divergência e isto é particularmente notório entre os países centrais (Drache, 1999: 15). Porque as políticas de salários e de segurança social continuaram a ser definidas a nível nacional, as medidas de liberalização desde a década de oitenta não reduziram significativamente as diferenças nos custos do trabalho entre os diferentes países. Assim, em 1997, a remuneração média da hora de trabalho na Alemanha (32$ US) era 54% mais elevada que nos EUA (17.19$ US). E mesmo dentro da União Europeia, onde têm estado em curso nas últimas décadas políticas de "integração profunda", as diferenças de produtividade e de custos salariais têm-se mantido com a excepção da Inglaterra, em que os custos salariais foram reduzidos em 40% desde 1980. Tomando a Alemanha Ocidental como termo de comparação (100%), a produtividade do trabalho em Portugal era, em 1998, 34,5% e os custos salariais, 37,4%. Estes números eram para a Espanha, 62% e 66,9%, respectivamente; para a Inglaterra, 71,7% e 68%; e para a Irlanda, 69,5 e 71,8% (Drache, 1999: 24). Por último, é difícil sustentar que a selectividade e a fragmentação excludente da "nova economia" destruiu o conceito de "Sul" quando, como vimos atrás, a disparidade de riqueza entre países pobres e países ricos não cessou de aumentar nos últimos vinte ou trinta anos. É certo que a liberalização dos mercados desestruturou os processos de inclusão e de exclusão nos diferentes países e regiões. Mas o importante é analisar em cada país ou região a ratio entre inclusão e exclusão. É essa ratio que determina se um país pertence ao Sul ou ao Norte, ao centro ou à periferia ou semiperiferia do sistema mundial. Os países onde a integração na economia mundial se processou dominantemente pela exclusão são os países do Sul e da periferia do sistema mundial.
Estas transformações merecem uma atenção detalhada, mas não restam dúvidas de que só as viragens ideológicas que ocorreram na comunidade científica, tanto no Norte como no Sul, podem explicar que as iniquidades e assimetrias no sistema mundial, apesar de terem aumentado, tenham perdido centralidade analítica. Por isso, o "fim do Sul", o "desaparecimento do Terceiro Mundo" são, acima de tudo, um produto das mudanças de "sensibilidade sociológica" que devem ser, elas próprias, objecto de escrutínio. Em alguns autores, o fim do Sul ou do Terceiro Mundo não resulta de análises específicas sobre o Sul ou o Terceiro Mundo, resulta tão-só do "esquecimento" a que estes são votados. A globalização é vista a partir dos países centrais tendo em vista as realidades destes. É assim, muito particularmente, o caso dos autores que se centram na globalização económica.[9] Mas as análises culturalistas incorrem frequentemente no mesmo erro. A título de exemplo, as teorias da reflexividade aplicadas à modernidade, à globalização ou à acumulação (Beck, 1992; Giddens, 1991; Lash e Urry, 1996) e, em particular, a ideia de Giddens de que a globalização é a "modernização reflexiva", esquecem que a grande maioria da população mundial sofre as consequências de uma modernidade ou de uma globalização nada reflexiva ou que a grande maioria dos operários vivem em regimes de acumulação que estão nos antípodas da acumulação reflexiva.
Tanto a falácia do determinismo como a falácia do desaparecimento do Sul têm vindo a perder credibilidade à medida que a globalização se transforma num campo de contestação social e política. Se para alguns ela continua a ser considerada como o grande triunfo da racionalidade, da inovação e da liberdade capaz de produzir progresso infinito e abundância ilimitada, para outros ela é anátema já que no seu bojo transporta a miséria, a marginalização e a exclusão da grande maioria da população mundial, enquanto a retórica do progresso e da abundância se torna em realidade apenas para um clube cada vez mais pequeno de privilegiados. Nestas circunstâncias, não admira que tenham surgido nos últimos anos vários discursos da globalização. Robertson (1998), por exemplo, distingue quatro grandes discursos da globalização. O discurso regional, como, por exemplo, o discurso asiático, o discurso europeu ocidental, ou o discurso latino-americano, tem uma tonalidade civilizacional, sendo a globalização posta em confronto com as especificidades regionais. Dentro da mesma região, pode haver diferentes subdiscursos. Por exemplo, em França há uma forte tendência para ver na globalização uma ameaça "anglo-americana" à sociedade e à cultura francesa e às de outros países europeus. Mas, como diz Robertson, o anti-globalismo dos franceses pode facilmente converter-se no projecto francês de globalização. O discurso disciplinar diz respeito ao modo como a globalização é vista pelas diferentes ciências sociais. O traço mais saliente deste discurso é a saliência que é dada à globalização económica. O discurso ideológicoentrecruza-se com qualquer dos anteriores e diz respeito à avaliação política dos processos de globalização. Ao discurso pro-globalização contrapõe-se o discurso anti-globalização e em qualquer deles é possível distinguir posições de esquerda e de direita. Finalmente, o discurso feminista que, tendo começado por ser um discurso anti-globalização - privilegiando o local e atribuindo o global a uma preocupação masculina -, é hoje também um discurso da globalização e distingue-se pela ênfase dada aos aspectos comunitários da globalização.
A pluralidade de discursos sobre a globalização mostra que é imperioso produzir uma reflexão teórica crítica da globalização e de o fazer de modo a captar a complexidade dos fenómenos que ela envolve e a disparidade dos interesses que neles se confrontam. A proposta teórica que apresento aqui parte de três aparentes contradições que, em meu entender, conferem ao período histórico, em que nos encontramos, a sua especificidade transicional. A primeira contradição é entre globalização e localização. O tempo presente surge-nos como dominado por um movimento dialéctico em cujo seio os processos de globalização ocorrem de par com processos de localização. De facto, à medida que a interdependência e as interacções globais se intensificam, as relações sociais em geral parecem estar cada vez mais desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos às opções, que atravessam fronteiras até há pouco tempo policiadas pela tradição, pelo nacionalismo, pela linguagem ou pela ideologia, e frequentemente por todos eles em conjunto. Mas, por outro lado, e em aparente contradição com esta tendência, novas identidades regionais, nacionais e locais estão a emergir, construídas em torno de uma nova proeminência dos direitos às raízes. Tais localismos, tanto se referem a territórios reais ou imaginados, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas relações face-a-face, na proximidade e na interactividade.
Localismos territorializados são, por exemplo, os protagonizados por povos que, ao fim de séculos de genocídio e de opressão cultural, reivindicam, finalmente com algum êxito, o direito à autodeterminação dentro dos seus territórios ancestrais. É este o caso dos povos indígenas da América Latina e também da Austrália, do Canadá e da Nova Zelândia. Por seu lado, os localismos translocalizados são protagonizados por grupos sociais translocalizados, tais como os imigrantes árabes em Paris ou Londres, os imigrantes turcos na Alemanha ou os imigrantes latinos nos EUA. Para estes grupos, o território é a ideia de território, enquanto forma de vida em escala de proximidade, imediação, pertença, partilha e reciprocidade. Aliás, esta reterritorialização, que usualmente ocorre a um nível infra-estatal, pode também ocorrer a um nível supra-estatal. Um bom exemplo deste último processo é a União Europeia, que, ao mesmo tempo que desterritorializa as relações sociais entre os cidadãos dos Estados membros, reterritorializa as relações sociais com Estados terceiros (a "Europa-fortaleza").
A segunda contradição é entre o Estado-nação e o não-Estado transnacional. A análise precedente sobre as diferentes dimensões da globalização dominante mostrou que um dos pontos de maior controvérsia, nos debates sobre a globalização, é a questão do papel do Estado na era da globalização. Se, para uns, o Estado é uma entidade obsoleta e em vias de extinção ou, em qualquer caso, muito fragilizada na sua capacidade para organizar e regular a vida social, para outros, o Estado continua a ser a entidade política central, não só porque a erosão da soberania é muito selectiva, como, sobretudo, porque a própria institucionalidade da globalização - das agências financeiras multilaterais à desregulação da economia - é criada pelos Estados nacionais. Cada uma destas posições capta uma parte dos processos em curso. Nenhuma delas, porém, faz justiça às transformações no seu conjunto porque estas são, de facto, contraditórias e incluem tanto processos de estatização - a tal ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram tão importantes como hoje - como processos de desestatização em que interacções, redes e fluxos transnacionais da maior importância ocorrem sem qualquer interferência significativa do Estado, ao contrário do que sucedia no período anterior.
A terceira contradição, de natureza político-ideológica, é entre os que vêem na globalização a energia finalmente incontestável e imbatível do capitalismo e os que vêem nela uma oportunidade nova para ampliar a escala e o âmbito da solidariedade transnacional e das lutas anticapitalistas. A primeira posição é, aliás, defendida, tanto pelos que conduzem a globalização e dela beneficiam, como por aqueles para quem a globalização é a mais recente e a mais virulenta agressão externa contra os seus modos de vida e o seu bem estar.
Estas três contradições condensam os vectores mais importantes dos processos de globalização em curso. À luz delas, é fácil ver que as disjunções, as ocorrências paralelas e as confrontações são de tal modo significativas que o que designamos por globalização é, de facto, uma constelação de diferentes processos de globalização e, em última instância, de diferentes e, por vezes, contraditórias, globalizações.
Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações sociais, as globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, é errado pensar que as novas e mais intensas interacções transnacionais produzidas pelos processos de globalização eliminaram as hierarquias no sistema mundial. Sem dúvida que as têm vindo a transformar profundamente, mas isso não significa que as tenham eliminado. Pelo contrário, a prova empírica vai no sentido oposto, no sentido da intensificação das hierarquias e das desigualdades. As contradições e disjunções acima assinaladas sugerem que estamos num período transicional no que respeita a três dimensões principais: transição no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial; transição no formato institucional e na complementaridade entre instituições; transição na escala e na configuração dos conflitos sociais e políticos.
A teoria a construir deve, pois, dar conta da pluralidade e da contradição dos processos da globalização em vez de os tentar subsumir em abstracções redutoras. A teoria que a seguir proponho assenta no conceito de sistema mundial em transição. Em transição porque contém em si o sistema mundial velho, em processo de profunda transformação, e um conjunto de realidades emergentes que podem ou não conduzir a um novo sistema mundial, ou a outra qualquer entidade nova, sistémica ou não. Trata-se de uma circunstância que, quando captada em corte sincrónico, revela uma total abertura quanto a possíveis alternativas de evolução. Tal abertura é o sintoma de uma grande instabilidade que configura uma situação de bifurcação, entendida em sentido prigoginiano. É uma situação de profundos desequilíbrios e de compromissos voláteis em que pequenas alterações podem produzir grandes transformações. Trata-se, pois, de uma situação caracterizada pela turbulência e pela explosão das escalas.[10] A teoria que aqui proponho pretende dar conta da situação de bifurcação e, como tal, não pode deixar de ser, ela própria, uma teoria aberta às possibilidades de caos.
O sistema mundial em transição é constituído por três constelações de práticas colectivas: a constelação de práticas interestatais, a constelação de práticas capitalistas globais e a constelação de práticas sociais e culturais transnacionais. As práticas interestatais correspondem ao papel dos Estados no sistema mundial moderno enquanto protagonistas da divisão internacional do trabalho no seio do qual se estabelece a hierarquia entre centro, periferia e semiperiferia. As práticas capitalistas globais são as práticas dos agentes económicos cuja unidade espácio-temporal de actuação real ou potencial é o planeta. As práticas sociais e culturais transnacionais são os fluxos transfronteiriços de pessoas e de culturas, de informação e de comunicação. Cada uma destas constelações de práticas é constituída por: um conjunto de instituições que asseguram a sua reprodução, a complementaridade entre elas e a estabilidade das desigualdades que elas produzem; uma forma de poder que fornece a lógica das interacções e legitima as desigualdades e as hierarquias; uma forma de direito que fornece a linguagem das relações intrainstitucionais e interinstitucionais e o critério da divisão entre práticas permitidas e proibidas; um conflito estrutural que condensa as tensões e contradições matriciais das práticas em questão; um critério de hierarquização que define o modo como se cristalizam as desigualdades de poder e os conflitos em que eles se traduzem; finalmente, ainda que todas as práticas do sistema mundial em transição estejam envolvidas em todos os modos de produção de globalização , nem todas estão envolvidas em todos eles com a mesma intensidade.
O quadro nº 1 descreve a composição interna de cada um dos componentes das diferentes constelações de práticas. Detenho-me apenas nos que exigem uma explicação. Antes disso, porém, é necessário identificar o que distingue o sistema mundial em transição (SMET) do sistema mundial moderno (SMM). Em primeiro lugar, enquanto o SMM assenta em dois pilares, a economia-mundo e o sistema interestatal, o SMET assenta em três pilares e nenhum deles tem a consistência de um sistema. Trata-se antes de constelações de práticas cuja coerência interna é intrinsecamente problemática. A maior complexidade (e também incoerência) do sistema mundial em transição reside em que nele os processos da globalização vão muito para além dos Estados e da economia, envolvendo práticas sociais e culturais que no SMM estavam confinadas aos Estados e sociedades nacionais ou sub-unidades deles. Aliás, muitas das novas práticas culturais transnacionais são originariamente transnacionais, ou seja, constituem-se livres da referência a uma nação ou a um Estado concretos ou, quando recorrem a eles, fazem-no apenas para obter matéria prima ou infraestrutura local para a produção de transnacionalidade. Em segundo lugar, as interacções entre os pilares do SMET são muito mais intensas que no SMM. Aliás, enquanto no SMM os dois pilares tinham contornos claros e bem distintos, no SMET há uma interpenetração constante e intensa entre as diferentes constelações de práticas, de tal modo que entre elas há zonas cinzentas ou híbridas onde as constelações assumem um carácter particularmente compósito. Por exemplo, a Organização Mundial do Comércio é uma instituição híbrida constituída por práticas interestatais e por práticas capitalistas globais do mesmo modo que os fluxos migratórios são uma instituição híbrida onde, em graus diferentes, consoante as situações, estão presentes as três constelações de práticas. Em terceiro lugar, ainda que permaneçam no SMET muitas das instituições centrais do SMM, elas desempenham hoje funções diferentes sem que a sua centralidade seja necessariamente afectada. Assim, o Estado, que no SMM assegurava a integração da economia, da sociedade e da cultura nacionais, contribui hoje activamente para a desintegração da economia, da sociedade e da cultura a nível nacional em nome da integração destas na economia, na sociedade e na cultura globais.
Os processos de globalização resultam das interacções entre as três constelações de práticas. As tensões e contradições, no interior de cada uma das constelações e nas relações entre elas, decorrem das formas de poder e das desigualdades na distribuição do poder. Essa forma de poder é a troca desigual em todas elas, mas assume formas específicas em cada uma das constelações que derivam dos recursos, artefactos, imaginários que são objecto de troca desigual. O aprofundamento e a intensidade das interacções interestatais, globais e transnacionais faz com que as formas de poder se exerçam como trocas desiguais. Porque se trata de trocas e as desigualdades podem, dentro de certos limites, ser ocultadas ou manipuladas, o registo das interacções no SMET assume muitas vezes (e credivelmente) o registo da horizontalidade através de ideias-força como interdependência, complementaridade, coordenação, cooperação, rede, etc. Em face disto, os conflitos tendem a ser experienciados como difusos, sendo por vezes difícil definir o que está em conflito ou quem está em conflito. Mesmo assim é possível identificar em cada constelação de práticas um conflito estrutural, ou seja, um conflito que organiza as lutas em torno dos recursos que são objecto de trocas desiguais. No caso de práticas interestatais, o conflito trava-se em torno da posição relativa na hierarquia do sistema mundial já que é este que dita o tipo de trocas e graus de desigualdades. As lutas pela promoção ou contra a despromoção e os movimentos na hierarquia do sistema mundial em que se traduzem são processos de longa duração que em cada momento se cristalizam em graus de autonomia e de dependência. Ao nível das práticas capitalistas globais, a luta trava-se entre a classe capitalista global e todas as outras classes definidas a nível nacional, sejam elas a burguesia, a pequena burguesia e o operariado. Obviamente, os graus de desigualdade da troca e os mecanismos que as produzem são diferentes consoante as classes em confronto, mas em todos os casos trava-se uma luta pela apropriação ou valorização de recursos mercantis, sejam eles o trabalho ou o conhecimento, a informação ou as matérias primas, o crédito ou a tecnologia. O que resta das burguesias nacionais e a pequena burguesia são, nesta fase de transição, a almofada que amortece e a cortina de fumo que obscurece a contradição cada vez mais nua e crua entre o capital global e o trabalho entretanto transformado em recurso global.
No domínio das práticas sociais e culturais transnacionais, as trocas desiguais dizem respeito a recursos não-mercantis cuja transnacionalidade assenta na diferença local, tais como, etnias, identidades, culturas, tradições, sentimentos de pertença, imaginários, rituais, literatura escrita ou oral. São incontáveis os grupos sociais envolvidos nestas trocas desiguais e as suas lutas travam-se em torno do reconhecimento da apropriação ou da valorização não mercantil desses recursos, ou seja, em torno da igualdade na diferença e da diferença na igualdade.
A interacção recíproca e interpenetração das três constelações de práticas faz com que os três tipos de conflitos estruturais e as trocas desiguais que os alimentam se traduzam na prática em conflitos compósitos, híbridos ou duais em que, de diferentes formas, estão presentes elementos de cada um dos conflitos estruturais. A importância deste facto está no que designo por transconflitualidade, que consiste em assimilar um tipo de conflito a outro e em experienciar um conflito de certo tipo como se ele fosse de outro tipo. Assim, por exemplo, um conflito no interior das práticas capitalistas globais pode ser assimilado a um conflito interestatal e ser vivido como tal pelas partes em conflito. Do mesmo modo, um conflito interestatal pode ser assimilado a um conflito de práticas culturais transnacionais e ser vivido como tal. A transconflitualidade é reveladora da abertura e da situação de bifurcação que caracterizam o SMET porque, à partida, não é possível saber em que direcção se orienta a transconflitualidade. No entanto, a direcção que acaba por se impor é decisiva, não só para definir o perfil prático do conflito, como o seu âmbito e o seu resultado.
Sugiro que, nas condições presentes do SMET, a análise dos processos de globalização e das hierarquias que eles produzem seja centrada nos critérios que definem o global/local. Para além da justificação acima dada, há uma outra que julgo importante e que se pode resumir no que designo por voracidade diferenciadora do global/local. No SMM a hierarquia entre centro, semiperiferia e periferia era articulável com uma série de dicotomias que derivavam de uma variedade de formas de diferenciação desigual. Entre as formas de dicotomização, saliento: desenvolvido/subdesenvolvido, moderno/tradicional, superior/inferior, universal/particular, racional/irracional, industrial/agrícola, urbano/rural. Cada uma destas formas tinha um registo semântico próprio, uma tradição intelectual, uma intencionalidade política e um horizonte projectivo. O que é novo no SMET é o modo como a dicotomia global/local tem vindo a absorver todas as outras, não só no discurso científico como no discurso político.
O global e o local são socialmente produzidos no interior dos processos de globalização. Distingo quatro processos de globalização produzidos por outros tantos modos de globalização. Eis a minha definição de modo de produção de globalização: é o conjunto de trocas desiguais pelo qual um determinado artefacto, condição, entidade ou identidade local estende a sua influência para além das fronteiras nacionais e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outro artefacto, condição, entidade ou identidade rival.
As implicações mais importantes desta concepção são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema mundial em transição não existe globalização genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, real ou imaginada, uma inserção cultural específica. A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. O processo que cria o global, enquanto posição dominante nas trocas desiguais, é o mesmo que produz o local, enquanto posição dominada e, portanto, hierarquicamente inferior. De facto, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correcto se a presente situação e os nossos tópicos de investigação se definissem em termos de localização, em vez de globalização. O motivo por que é preferido o último termo é, basicamente, o facto de o discurso científico hegemónico tender a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores. Não é por acaso que o livro de Benjamim Barber, sobre as tensões no processo de globalização, se intitula Jihad versus McWorl (1995) e não MacWorld versus Jihad.
Existem muitos exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa enquanto lingua franca é um desses exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou sequencialmente. A globalização do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a localização (etnicização) do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 - de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroianni a Sophia Loren - que simbolizavam então o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se não mesmo curiosamente étnicos. A diferença do olhar reside em que, de então para cá, o modo de representar hollywoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira.
Uma das transformações mais frequentemente associadas aos processos de globalização é a compressão tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos se aceleram e se difundem pelo globo (Harvey, 1989). Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situações e condições altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser analisado independentemente das relações de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista global, aquela que realmente controla a compressão tempo-espaço e que é capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refugiados, que nas últimas décadas têm efectuado bastante movimentação transfronteiriça, mas que não controlam, de modo algum, a compressão tempo-espaço. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produção da compressão tempo-espaço.
Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalização mas, não obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses da Bolívia, do Perú e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios permanecem "localizados" nas suas aldeias e montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada.
Ainda noutra perspectiva, a competência global requer, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm de vincar o seu carácter exótico, vernáculo e tradicional para poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo.
A produção de globalização implica, pois, a produção de localização. Longe de se tratar de produções simétricas, é por via delas que se estabelece a hierarquização dominante no SMET. Nos seus termos, o local é integrado no global por duas vias possíveis: pela exclusão ou pela inclusão subalterna. Apesar de, na linguagem comum e no discurso político, o termo globalização transmitir a ideia de inclusão, o âmbito real da inclusão pela globalização, sobretudo económica, pode ser bastante limitado. Vastas populações do mundo, sobretudo em África, estão a ser globalizadas em termos do modo específico por que estão a ser excluídas pela globalização hegemónica.[11] O que caracteriza a produção de globalização é o facto de o seu impacto se estender tanto às realidades que inclui como às realidades que exclui. Mas o decisivo na hierarquia produzida não é apenas o âmbito da inclusão, mas a sua natureza. O local, quando incluído, é-o de modo subordinado, segundo a lógica do global. O local que precede os processos de globalização, ou que consegue permanecer à margem, tem muito pouco a ver com o local que resulta da produção global da localização. Aliás, o primeiro tipo de local está na origem dos processos de globalização, enquanto o segundo tipo é o resultado da operação destes.
O modo de produção geral de globalização desdobra-se em quatro modos de produção, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização.
A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em lingua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das mesmas leis de propriedade intelectual, de patentes ou de telecomunicações promovida agressivamente pelos EUA. Neste modo de produção de globalização o que se globaliza é o vencedor de uma luta pela apropriação ou valorização de recursos ou pelo reconhecimento da diferença. A vitória traduz-se na faculdade de ditar os termos da integração, da competição e da inclusão. No caso do reconhecimento da diferença, o localismo globalizado implica a conversão da diferença vitoriosa em condição universal e a consequente exclusão ou inclusão subalterna de diferenças alternativas.
À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico nas condições locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem dos localismos globalizados. Para responder a esses imperativos transnacionais, as condições locais são desintegradas, desestruturadas e, eventualmente, reestruturadas sob a forma de inclusão subalterna. Tais globalismos localizados incluem: a eliminação do comércio de proximidade; criação de enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestação e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimónias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecológico ("compra" pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do "ajustamento estrutural"; etnicização do local de trabalho (desvalorização do salário pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado "inferior" ou "menos exigente").[12]
Estes dois modos de produção de globalização operam em conjunção, mas devem ser tratados separadamente dado que os factores, os agentes e os conflitos que intervêm num e noutro são distintos. A produção sustentada de localismos globalizados e de globalismos localizados é cada vez mais determinante para a hierarquização específica das práticas interestatais. A divisão internacional da produção da globalização tende a assumir o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a escolha de globalismos localizados. Os países semiperiféricos são caracterizados pela coexistência de localismos globalizados e de globalismos localizados e pelas tensões entre eles. O sistema mundial em transição é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados.
Para além destes dois modos de produção de globalização há outros dois, talvez os que melhor definem as diferenças e a novidade do SMET em relação ao SMM porque ocorrem no interior da constelação das práticas que irrompeu com particular pujança nas últimas décadas - as práticas sociais e culturais transnacionais -, ainda que se repercutam nas restantes constelações de práticas. Dizem respeito à globalização da resistência aos localismos globalizados e aos globalismos localizados. Designo o primeiro por cosmopolitismo. Trata da organização transnacional da resistência de Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e os globalismos localizados, usando em seu benefício as possibilidades de interacção transnacional criadas pelo sistema mundial em transição, incluindo as que decorrem da revolução nas tecnologias de informação e de comunicação. A resistência consiste em transformar trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada, e traduz-se em lutas contra a exclusão, a inclusão subalterna, a dependência, a desintegração, a despromoção. As actividades cosmopolitas incluem, entre muitas outras: movimentos e organizações no interior das periferias do sistema mundial; redes de solidariedade transnacional não desigual entre o Norte e o Sul; a articulação entre organizações operárias dos países integrados nos diferentes blocos regionais ou entre trabalhadores da mesma empresa multinacional operando em diferentes países (o novo internacionalismo operário); redes internacionais de assistência jurídica alternativa; organizações transnacionais de direitos humanos; redes mundiais de movimentos feministas; organizações não governamentais (ONG's) transnacionais de militância anticapitalista; redes de movimentos e associações indígenas, ecológicas ou de desenvolvimento alternativo; movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, contra-hegemónicos, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas. Pese embora a heterogeneidade dos movimentos e organizações envolvidas, a contestação à Organização Mundial de Comércio aquando da sua reunião em Seattle, a 30 de Novembro de 1999, foi uma eloquente manifestação do que designo por cosmopolitismo. Foi seguida por outras contestações contra as instituições financeiras da globalização hegemónica realizadas em Washington, Montreal, Genebra e Praga. O Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em Janeiro de 2001 foi outra importante manifestação de cosmopolitismo.
O uso do termo "cosmopolitismo" para descrever práticas e discursos de resistência, contra as trocas desiguais no sistema mundial tardio, pode parecer inadequado em face da sua ascendência modernista, tão eloquentemente descrito por Toulmin (1990), bem como à luz da sua utilização corrente para descrever práticas que são aqui concebidas, quer como localismos globalizados, quer como globalismos localizados (para não referir a sua utilização para descrever o âmbito mundial das empresas multinacionais como "cosmocorp"). Emprego, contudo, para assinalar que, contrariamente à crença modernista (particularmente no momento de fin de siecle), o cosmopolitismo é apenas possível de um modo intersticial nas margens do sistema mundial em transição como uma prática e um discurso contra-hegemónicos gerados em coligações progressistas de classes ou grupos subalternos e seus aliados. O cosmopolitismo é efectivamente uma tradição da modernidade ocidental, mas é uma das muitas tradições suprimidas ou marginalizadas pela tradição hegemónica que gerou no passado a expansão europeia, o colonialismo e o imperialismo, e que hoje gera os localismos globalizados e os globalismos localizados.
Neste contexto, é ainda necessário fazer uma outra precisão. O cosmopolitismo pode invocar a crença de Marx na universalidade daqueles que, sob o capitalismo, têm somente a perder as suas grilhetas.[13] Não enjeito tal invocação, mas insisto na distinção entre o cosmopolitismo, tal como o entendo, e o universalismo da classe trabalhadora marxista. Para além da classe operária descrita por Marx, as classes dominadas do mundo actual são agrupáveis em mais duas categorias, nenhuma delas redutível à classe-que-só-tem-a-perder-as-grilhetas. Por um lado, sectores consideráveis ou influentes das classes trabalhadoras dos países centrais, e até dos países semiperiféricos, que têm hoje mais a perder do que as grilhetas, mesmo que esse "mais" não seja muito mais, ou seja, mais simbólico do que material. [14]Por outro, vastas populações do mundo que nem sequer têm grilhetas, ou seja, que não são suficientemente úteis ou aptas para serem directamente exploradas pelo capital e a quem, consequentemente, a eventual ocorrência de uma tal exploração soaria como libertação. Em toda a sua variedade, as coligações cosmopolitas visam a luta pela emancipação das classes dominadas, sejam elas dominadas por mecanismos de opressão ou de exploração. Talvez por isso, contrariamente à concepção marxista, o cosmopolitismo não implica uniformidade e o colapso das diferenças, autonomias e identidades locais. O cosmopolitismo não é mais do que o cruzamento de lutas progressistas locais com o objectivo de maximizar o seu potencial emancipatório in loco através das ligações translocais/locais.
Provavelmente a mais importante diferença entre a minha concepção de cosmopolitismo e a universalidade dos oprimidos de Marx é que as coligações cosmopolitas progressistas não têm necessariamente uma base classista. Integram grupos sociais constituídos em base não-classista, vítimas, por exemplo, de discriminação sexual, étnica, rácica, religiosa, etária, etc. Por esta razão, em parte, o carácter progressista ou contra-hegemónico das coligações cosmopolitas nunca pode ser determinado em abstracto. Ao invés, é intrinsecamente instável e problemático. Exige dos que nelas participam uma auto-reflexividade permanente. Iniciativas cosmopolitas concebidas e criadas com um carácter contra-hegemónico podem vir a assumir posteriormente características hegemónicas, correndo mesmo o risco de se converterem em localismos globalizados. Basta pensar nas iniciativas de democracia participativa a nível local que durante anos tiveram de lutar contra o "absolutismo" da democracia representativa e a desconfiança por parte das elites políticas conservadoras, tanto nacionais como internacionais, e que hoje começam a ser reconhecidas e mesmo apadrinhadas pelo Banco Mundial seduzido pela eficácia e pela ausência de corrupção com que tais iniciativas aplicam os fundos e os empréstimos de desenvolvimento. A vigilância auto-reflexiva é essencial para distinguir entre a concepção tecnocrática de democracia participativa sancionada pelo Banco Mundial e a concepção democrática e progressista de democracia participativa, embrião de globalização contra-hegemónica.[15]
A instabilidade do carácter progressista ou contra-hegemónico decorre ainda de um outro factor: das diferentes concepções de resistência emancipatória por parte de iniciativas cosmopolitas em diferentes regiões do sistema mundial. Por exemplo, a luta pelos padrões mínimos da qualidade de trabalho (os chamados labor standards) - luta conduzida pelas organizações sindicais e grupos de direitos humanos dos países mais desenvolvidos, com objectivos de solidariedade internacionalista, no sentido de impedir que produtos produzidos com trabalho que não atinge esses padrões mínimos possam circular livremente no mercado mundial -, é certamente vista pelas organizações que a promovem como contra-hegemónica e emancipatória, uma vez que visa melhorar as condições de vida dos trabalhadores, mas pode ser vista por organizações similares dos países da periferia como mais uma estratégia hegemónica do Norte, cujo efeito útil é criar mais uma forma de proteccionismo favorável aos países ricos.
O segundo modo de produção de globalização em que se organiza a resistência aos localismos globalizados e aos globalismos localizados, é o que eu designo, recorrendo ao direito internacional, o património comum da humanidade. Trata-se de lutas transnacionais pela protecção e desmercadorização de recursos, entidades, artefactos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária. Pertencem ao património comum da humanidade, em geral, as lutas ambientais, as lutas pela preservação da Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos marinhos e ainda as lutas pela preservação do espaço exterior, da lua e de outros planetas concebidos também como património comum da humanidade. Todas estas lutas se referem a recursos que, pela sua natureza, têm de ser geridos por outra lógica que não a das trocas desiguais, por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras.[16]
O cosmopolitismo e o património comum da humanidade conheceram grande desenvolvimento nas últimas décadas. Através deles se foi construindo uma globalização política alternativa à hegemónica desenvolvida a partir da necessidade de criar uma obrigação política transnacional correspondente à que até agora vinculou mutuamente cidadãos e Estados-nação. Tal obrigação política mais ampla é por agora meramente conjuntural uma vez que está ainda por concretizar (ou sequer imaginar) uma instância política transnacional correspondente à do Estado-nação. No entanto, as Organizações Não-Governamentais de advocacia progressista transnacional, as alianças entre elas e organizações e movimentos locais em diferentes partes do mundo, a organização de campanhas contra a globalização hegemónica (das campanhas do Greenpeace à Campanha Jubileu 2000), todos estes fenómenos são, por vezes, vistos como sinais de uma sociedade civil e política global apenas emergente.
Mas tanto o cosmopolitismo como o património comum da humanidade têm encontrado fortíssimas resistências por parte dos que conduzem a globalização hegemónica (localismos globalizados e globalismos localizados) ou dela se aproveitam. O património comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemónicos, sobretudo dos EUA. Os conflitos, as resistências, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do património comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, um conjunto de campos de lutas transnacionais. Daí a importância em distinguir entre globalização de-cima-para-baixo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica. Os localismos globalizados e os globalismos localizados são globalizações de-cima-para-baixo ou hegemónicas; cosmopolitismo e património comum da humanidade são globalizações de-baixo-para-cima, ou contra-hegemónicas. É importante ter em mente que estes dois tipos de globalização não existem em paralelo como se fossem duas entidades estanques. Ao contrário, são a expressão e o resultado das lutas que se travam no interior do campo social que convencionámos chamar globalização e que em realidade se constrói segundo quatro modos de produção. Como qualquer outra, a concepção de globalização aqui proposta não é pacífica.[17] Para a situar melhor nos debates actuais sobre a globalização são necessárias algumas precisões.
sábado, 7 de agosto de 2010
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