quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O Romantismo social português: 5 – João de Deus

Sílvio Castro


Ao contrário de quanto sucede com Soares de Passos, ninguém, e não só em Portugal, se colocará contra a afirmação de que João de Deus é um dos mais representativos poetas do romantismo social português. Paradoxalmente, em aparência, o subjetivismo lírico presente em tantos poemas do autor de Ramos de flores, lirismo embebido de vida recolhida diretamente do quotidiano e traduzida numa linguagem que retoma o melhor ritmo da tradição lirica nacional, esse lirismo profundamente individualista, mas ao mesmo tempo de ressonâncias universais, não obscura a face partecipante do poeta. Desde a apoteose pública em Lisboa que foram os funerais de João de Deus, falecido no dia 11 de Janeiro de 1896, estando o poeta por completar os seus sessenta e seis anos, Portugal o considera como um doce, mas firme herói civil.

A partir diretamente da linguagem poemática, o lirismo de João de Deus é simples e direto. A simplicidade resulta da consciência do autor de que os sentimentos, ainda os mais pessoais, podem ser transmitido diretamente ao seu leitor sem necessidade de altos recursos retóricos. Mas no fundo o resultado alcançado por essa linguagem se faz igualmente um grandíssimo resultado de uma retórica expressiva. João de Deus produz uma poesia que recorda sempre o ritmo das falas existenciais. A ingenuidade percebida a partir delas não é a tradução de uma simplicidade conceitual do poema, mas a percepção de um ritmo poemático que se faz reconhecer comum a todos. Assim é quando o poeta se debruça sobre o seu direto sentimento amoroso ou quando se faz cantor em procura da tradução do sentido maior do ser individual:


Os olhos sempre que os pus
Fitos nos astros do dia
(Parece que se introduz
Tanta luz na fantasia...)
Sabem o que acontecia?
Fechava os olhos e via
Do mesmo modo essa luz.

Assim foi certa visão
Que tive por meus pecados!
Nunca uma breve impressão
Em meus olhos descuidados
Deu tamanhos resultados...
Que é vê-la de olhos fechados,
Ainda no coração!

(“Sol íntimo”)

Esta mesma simplicidade encontramos na tradução que o poeta dá ao seu sentimento religioso, expresso liricamente em maneira tal a confundir-se com o de todo o mundo; ainda que, em circunstâncias e testemunhos diretamente pessoais do mesmo sentimento, o poeta adote uma ortodoxia católica quase paradoxal. Como acontece no momento da comemoração de Antero de Quental, uma das grandes admirações do poeta, com a publicação de um livro com testemunhos dos amigos. João de Deus se recusa participar na homenagem de um suicídio. Somente os pedidos dos confrades mais íntimos, o leva a contribuir com um belíssimo poema-epitáfio que faz parte do magnífico volume que é o Anthero de Quental – In Memorian.

A grande consciência de linguagem usada por João de Deus nos seus poemas, tanto naqueles da mais profunda subjetividade individual, quanto nos muitos de sentida participação com o mundo e com o “outro”, leva o poeta a uma de suas maiores criações, a Cartilha maternal, de 1876.

A poesia de João de Deus, principalmente naqueles poemas que passam do Flores do Campo (1868), ao Campo de Flores (1893), constituem um amplo e revelador sistema de metalinguagem. Este sistema encontrará na Cartilha maternal sua consequência lógica. Daí a surpreendente modernidade da pedagogia que caracterizou as últimas ações públicas de João de Deus. As crianças portuguesas, por diversas gerações, puderam aprender a língua já renovada por Garrett e muitas vezes compreendê-la e usá-la em diversos planos de linguagem. Possivelmente dela se originam alguns dos fatores que formam a ironia do falar de muitos portugueses. Ironia que o gênio de João de Deus traduzia principalmente nas suas composições satíricas, como em “Último suspiro”:

“Fui a semana passada
Visitar o hospital,
E vi numa enfermaria
O pobre de Portugal;"
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