segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Os poetas: ladrões de fogo ou artífices do verbo?

Carlos Loures

Definir a natureza da arte poética, é, como poderemos ver no apreciável painel que vamos expor na nossa “maratona poética”, uma discussão tão antiga quanto a civilização. Platão, Aristóteles, Horácio, Boileau, milhares de filósofos e de poetas discorreram sabiamente sobre este tema. Teremos oportunidade de, nas 24 horas do dia 8 de Setembro, ler 72 textos – poemas, textos poéticos, citações… Uma ampla panorâmica sobre esse tema tão discutido ao longo dos séculos.

“Ladrões de fogo” foi uma designação que usei num texto que publiquei na revista “Pirâmide” , da qual já aqui tenho falado. Nesse texto comparo os poetas a Prometeu. O poeta é um ladrão de fogo, um mago. Pelo poder da palavra cria a beleza para a ofertar aos homens. A comparação faz sentido, é sugestiva, mas talvez haja outra, menos bela, mas não menos verdadeira. Vejamos.

O poeta produz esta magia usando palavras comuns e não palavras mágicas. Esta capacidade de, com palavras usadas no dia a dia, construir um poema, pode conduzir-nos à tal conclusão, complementar da primeira – além de mago, o poeta é um artífice.

A comparação com Prometeu trazendo o fogo do Olimpo para a terra ou, como também já li algures, com Orfeu enfeitiçando a natureza, homens, animais e plantas, com o seu canto melodioso, é muito bonita. Mas equipará-lo a um trabalhador leva-nos a uma imagem , menos “poética” no sentido convencional, mas mais integradora da arte poética no quotidiano.: -o poeta é um artífice. A expressão «artes e ofícios» tem aqui pleno cabimento - o poeta é, portanto, um homem comum, um artista como um sapateiro ou um alfaiate o são. Em vez de cabedal ou de tecido, usa palavras, sentimentos e conceitos como matéria prima. Ofício: poeta. Daria lugar a conversas como esta: - "Ah, sim o Jorge. Olha, foi colocado como poeta na Covilhã".

 Na verdade e humor aparte, a divinização do poeta, isola-o e condena-o ao ostracismo. Ora um poeta, um escritor, um artista deveria ter uma função na sociedade. Como teve. Bem sei que na Pré-História não havia televisão, nem blogues, mas quem, nas sociedades primitivas dispensaria que à noite, acabadas as tarefas diárias, se contassem histórias? Podemos puxar pela imaginação: o fulgor das labaredas das fogueiras cria sombras sinistras nas paredes da caverna. O poeta, o contador de histórias descreve as peripécias da caçada, as crianças aconchegam-se temerosas às mães e as passagens mais excitantes da narrativa são sublinhadas com gritos de medo ou com um rumor de assentimento. Esse contador de histórias, o aedo da Grécia, bardos, jograis, trovadores, tiveram a mesma tarefa de um poeta, ou de um escritor dos nossos dias – efabular a realidade e devolvê-la, valorizada pelo verbo, aos seus protagonistas - os homens comuns.

Vejo, com algum desgosto, persistir um conceito de poesia que nada tem a ver com essa função social, identificando-a com coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas. Ora (e foi isso que tentei dizer com os meus textos anteriores), na minha maneira de ver a poesia nada tem a ver com essa indefinição. Ela  é, tal como o sonho na “Pedra Filosofal” como diz o Gedeão . "uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer” e o poeta, um trabalhador tão necessário como todos os outros. Claro, há grande poesia intimista, que ao dar-nos conta da dor, da angústia do indivíduo que a confessa, nos torna conscientes das nossas próprias dores e angústias. Não estou a querer reduzir o território da poesia.


Não foi por acaso que escolhemos para o arranque da "Maratona Poética" o poema de Fernando Pessoa,
vestindo o seu heterónimo de Bernardo Soares, Autopsicografia. aquele que diz: "O poeta é um fingidor/
Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente... Todos conhecemos esta primeira quadra. Mas há mais duas e, quanto a mim, é na segunda que se encontra a receita poética pessoana: "E os que lêem o que escreve,/Na dor lida sentem bem,/Não as duas que ele teve,/Mas só a que eles não têm."

 Ao fingir as dores que realmente sente o poeta torna quem o lê consciente das dores da Humanidade.

9 comentários:

  1. O poeta "explica-nos" e ajuda-nos a "suportar" o que não entedemos, e fá-lo devolvendo-nos a esperança na forma poetica, bela e usada como uguento eficaz.

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  2. E eu não consigo deixar de vir aqui todos os dias ler estes belos textos. O Estrolábio é um patrão tirano. Não me dá folga.

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  3. Magnífico texto este, como não podia deixar de ser vindo de uma cabeça como a de Carlos Loures. No entanto, apesar do respeito, admiração e atracção que tenho pela sabedoria deste grande amigo, há pontos em que, saudavelmente discordo dele.
    Quando ele diz "Vejo, com algum desgosto, persistir um conceito de poesia que nada tem a ver com essa função social, identificando-a com coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas..." eu paro um pouco para pensar, e dou comigo a dizer a mim mesmo: o Carlos tem alguma razão, mas não a tem toda. A poesia do Pessoa é a poesia do Pessoa, a poesia do Rainer Maria Rilke é a poesia dele, a poesia do Gedeão é a poesia do Gedeão, a poesia do Federico Garcia Lorca é a poesia dele. Mas nenhum deles é a poesia, nenhum deles é o único poeta, o verdadeiro poeta, o sábio construtor da poesia, o verdadeiro artífice. Que ela é uma constante da vida, é verdade, tão concreta e definida como outra coisa qualquer não é verdade, na minha maneira de ver. É uma constante da vida como sentimento intrínseco da vida, sentimento privilegiado de quem é capaz de o agarrar, muito mais do que a habilidade de quem consegue ser apenas artífice na expressão desse sentimento. É por isso que há poemas de Lorca, de Eugénio de Andrade, de Pessoa, que pouco ou nada me dizem. Presunção? Nem pensem, ainda tenho a cabeça bem no sítio para saber que não sou cabotino. A diferença está em que eu habituei-me, por força da minha curiosidade e da minha sede de verdade, a ver e a sentir, neste caso, a poesia como a mais nobre expressão neurobiológica da harmonia e da estética da linguagem. Naquilo em que Carlos Loures vê "coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas", eu vejo apenas a necessidade de entendimento da poesia da melodia que sai da pauta de um grande artífice musical, a poesia e a vida que estão para além da tela de um grande artífice da pintura, a poesia contida e transmitida pelo poema de um grande artífice da poesia. E aqui, meu caro Carlos Loures, é que bate o ponto. O "Sentimento de Si" mostra-nos que os nossos sentimentos são muito diferentes e que o facto de um artífice da poesia ser considerado grande artífice, tenha de ser, obrigatoriamente, um bom poeta. O sentimento poético é um sentimento como outro qualquer e disto não há forma de duvidar. Como tu dizes, o poeta, como artífice, pode ser comparado a um homem comum, a um sapateiro, a um alfaiate, neste caso a um artífice das palavras. Mas a poesia já existe antes das palavras. Às vezes existe em gestos que não comportam palavras. E há imensos exemplos disso. A poesia, como já tenho dito, pode percorrer transversalmente todos os actos da nossa vida, e o poema, matriz habitual da poesia, por mais bem construido que seja por um grande artífice, pode nem sequer agarrar a poesia. Uma coisa é a partitura e a arte de jogar com as notas, outra coisa é a melodia que dela sai, uma coisa é o poema e a arte de jogar com as palavras, outra coisa é o que daí se evola como poesia. O tal etéreo, o devaneio, as ideias imprecisas, são tentativas honestas de resposta.

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  4. Magnífico texto este, como não podia deixar de ser vindo de uma cabeça como a de Carlos Loures. No entanto, apesar do respeito, admiração e atracção que tenho pela sabedoria deste grande amigo, há pontos em que, saudavelmente discordo dele.
    Quando ele diz "Vejo, com algum desgosto, persistir um conceito de poesia que nada tem a ver com essa função social, identificando-a com coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas..." eu paro um pouco para pensar, e dou comigo a dizer a mim mesmo: o Carlos tem alguma razão, mas não a tem toda. A poesia do Pessoa é a poesia do Pessoa, a poesia do Rainer Maria Rilke é a poesia dele, a poesia do Gedeão é a poesia do Gedeão, a poesia do Federico Garcia Lorca é a poesia dele. Mas nenhum deles é a poesia, nenhum deles é o único poeta, o verdadeiro poeta, o sábio construtor da poesia, o verdadeiro artífice. Que ela é uma constante da vida, é verdade, tão concreta e definida como outra coisa qualquer não é verdade, na minha maneira de ver. É uma constante da vida como sentimento intrínseco da vida, sentimento privilegiado de quem é capaz de o agarrar, muito mais do que a habilidade de quem consegue ser apenas artífice na expressão desse sentimento. É por isso que há poemas de Lorca, de Eugénio de Andrade, de Pessoa, que pouco ou nada me dizem. Presunção? Nem pensem, ainda tenho a cabeça bem no sítio para saber que não sou cabotino. A diferença está em que eu habituei-me, por força da minha curiosidade e da minha sede de verdade, a ver e a sentir, neste caso, a poesia como a mais nobre expressão neurobiológica da harmonia e da estética da linguagem. Naquilo em que Carlos Loures vê "coisas etéreas, devaneios, ideias imprecisas", eu vejo apenas a necessidade de entendimento da poesia da melodia que sai da pauta de um grande artífice musical, a poesia e a vida que estão para além da tela de um grande artífice da pintura, a poesia contida e transmitida pelo poema de um grande artífice da poesia. E aqui, meu caro Carlos Loures, é que bate o ponto. O "Sentimento de Si" mostra-nos que os nossos sentimentos são muito diferentes e que o facto de um artífice da poesia ser considerado grande artífice, tenha de ser, obrigatoriamente, um bom poeta. O sentimento poético é um sentimento como outro qualquer e disto não há forma de duvidar. Como tu dizes, o poeta, como artífice, pode ser comparado a um homem comum, a um sapateiro, a um alfaiate, neste caso a um artífice das palavras. Mas a poesia já existe antes das palavras. Às vezes existe em gestos que não comportam palavras. E há imensos exemplos disso. A poesia, como já tenho dito, pode percorrer transversalmente todos os actos da nossa vida, e o poema, matriz habitual da poesia, por mais bem construido que seja por um grande artífice, pode nem sequer agarrar a poesia. Uma coisa é a partitura e a arte de jogar com as notas, outra coisa é a melodia que dela sai, uma coisa é o poema e a arte de jogar com as palavras, outra coisa é o que daí se evola como poesia. O tal etéreo, o devaneio, as ideias imprecisas, são tentativas honestas de resposta.

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  5. Continuem, Adão e Carlos, é um poema as vossas salutares opinões divergentes.

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  6. Adão, meu caríssimo amigo - estou a tentar organizar a "Maratona". Tenho lido tantos poemas que coemço a ficar mal disposto só de olhar para um texto "às escadinhas", como dizia o coronel de Cavalaria, censor de Santarém. Para poupar tempo e poder voltar à minha meritória tarefa, auto-cito-me: «Claro, há grande poesia intimista, que ao dar-nos conta da dor, da angústia do indivíduo que a confessa, nos torna conscientes das nossas próprias dores e angústias. Não estou a querer reduzir o território da poesia». Portanto, uma boa parte da tua objecção foi prevista. Um abraço a todos e obrigado pelos vossos comentários (apesar da pressa com que estou, li todos - os do Adão davam magníficos posts defendendo um conceito de poesia que é o dele, não é bem o meu, mas... porque raio havíamos de coincidir a 100% em matéria tão controversa.

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  7. Falta um ponto de interrogação - controversa?»

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  8. Vou falhar a maratona da poesia porque nessa altura já estarei de novo desligada das novas tecnologias mas...

    Poetas Malditos (Adolfo Simões Müller)

    Malditos poetas, que disseram tudo
    e tudo tão bem dito!

    Malditos poetas, que me deixam mudo,
    sem um aí, uma súplica ou um grito!

    Raios os partam, cada qual maldito!

    Malditos, que roçaram no seu voo,
    com asas de veludo
    o infinito!

    Malditos poetas: Eu os abençoo...

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  9. Maria,Maria, como podes tu andares longe
    se já se esgota o dia
    no grito da cotovia...

    se a tarde escurece
    a noite toma conta do dia
    e já se ouve o grito da cotovia

    Maria, Maria, que pressa é essa
    se o horizonte
    é só para quem conte
    os gritos da cotovia...

    PS: pedindo desculpa a todos os poetas, mas já não me atemorizo com a possibilidade de não ser bom, e a Maria merece...

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