Carlos Loures
Em 8 de Setembro, realizámos aqui uma “maratona poética” – 24 horas emitindo poemas a um ritmo alucinante. O tema comum a todas as obras foi a «a arte poética». Poetas de diversas nações e de várias épocas, da Grécia Antiga à actualidade, dissertaram sobre a poesia e sobre o seu artífice, aquele que com palavras, sensações e sentimentos, a tece e constrói, oferecendo-nos em palavras o fogo, a que muitos chamam espírito e a que prefiro chamar humanidade. Em muitos textos, encontrámos a explicação do poeta sobre qual o objecto da poesia; noutros a justificação para ele próprio, autor, se exprimir através de poemas. Não esgotámos o tema. O tema é inesgotável.
Façamos então aqui fazer uma breve reflexão sobre a origem da poesia (e da arte em geral) e sobre a sua função específica dentro de uma comunidade. Sabendo que há obras mais recentes sobre o tema, vou, contudo, recorrer a uma obra que surgiu nos anos 60 do século XX, «A Necessidade da Arte», Ernst Fischer (1899-1972), um ensaísta austríaco. Dizia Fischer que «a arte é ela própria uma realidade social. A sociedade necessita do artista, esse supremo feiticeiro, e tem o direito de lhe pedir que tenha consciência da sua função social.»
Com o advento do capitalismo, surgiu pela primeira vez na história das civilizações uma classe dominante que não procurou colocar, de maneira objectiva, a arte ao seu serviço. O artista é livre de qualquer tutela e fica desvinculado de obrigações para com a comunidade de que faz parte. Porém, esta liberdade, longe do o libertar, sujeita-o à solidão, à angústia e ao desespero. Em alternativa, à submissão. É uma liberdade que o força a enfrentar sozinho uma sociedade orientada para o lucro. Ou o que produz é mercadoria vendível ou é rejeitado. O capitalismo não dá liberdade ao artista – abandona-o e ignora-o. Tem de optar entre aceitar as suas leis ou não existir.
Mas, voltemos a Fischer: «O artista na época do capitalismo encontrou-se numa situação muito peculiar. O rei Midas transformava tudo o que tocava em ouro: o capitalismo transformou tudo em mercadoria.» A arte passou a ser uma mercadoria e o artista um produtor. O sistema de mecenato foi substituído pela iniciativa privada e por um mercado livre onde a apreciação mercantil da obra ficou à mercê do gosto do público, gosto (de)formado por uma dinâmica de relações de mercado. Um livro, um quadro, uma partitura, têm de submeter-se às contingências da competição mercantil, às leis da oferta e da procura.
Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões, viviam de tenças, sinecuras ou de cargos atribuídos pela Corte. Shakespeare, burguês de origem, fazia parte da casa do conde de Leicester, submetendo-se a um estatuto feudal. Milton, que foi secretário dos negócios estrangeiros de Cromwell pôde guiar-se por uma norma burguesa, conciliando a sua poesia com as condições em que a criava, com total identificação entre a sua obra e as concepções políticas e sociais dominantes.. Mas os artistas raramente foram gratos a quem os apoiava. Como disse Montesquieu «quase todas as monarquias foram instituídas na ignorância das artes e destruídas porque as cultivaram demais.» Por vezes a arte foi a víbora que tiranos distraídos alimentaram e que os destruiu..
Mas não será um avanço o facto do artista poder criar a sua obra sem ter de agradar aos mecenas, ao rei, a senhores feudais, a burgueses ou ao Estado? Num certo aspecto, é verdade. Porém, não esqueçamos que agora é a opinião pública que ajuíza do valor da sua obra. E como é formada (ou deformada) essa opinião? Por pedagogos, por gente de cultura? Não. Os chamados opinion makers são, em regra gente inculta ou desonesta, por vezes as duas coisas. O «gosto popular» é formado pela imprensa – tablóides, revistas do coração – pela televisão, da forma que se sabe – telenovelas, reality shows, talk shows e toda essa tralha que nada tem a ver com a cultura. Em suma - o «gosto popular» é construído pelo marketing. No que se refere ao vestuário, à alimentação, a tudo – e também aos hábitos culturais.
Dirão, «mas então uma das funções da arte não é precisamente a de entreter, a de distrair? Antes da escrita, quem contava histórias nas cavernas ou as pintava na rocha, não correspondia, nesse esforço de recrear, aos artistas actuais? Sim, uma dos objectivos da arte será essa. Mas há um outro, mais importante – que é a de chamar a atenção para os problemas do ser humano e da humanidade – «abrir portas fechadas». Criar de acordo com o que o mercado pede é, como disse Fischer, «passar por portas abertas»: «A função da arte não é a de passar por portas abertas, mas é a de abrir as portas fechadas.
A cultura deve ser compreendida como todas as formas de expressão artística e todo o património material e simbólico da sociedade. Esse conjunto é fundamental para a nossa memória e identidade. Quando se promove oportunidade para que todos os grupos, inclusive as minorias, se exprimam culturalmente, fomenta-se o respeito pela diversidade. Assim, a cultura constitui-se como um veículo eficaz de promoção da paz, da cidadania, da coesão nacional». Quando o artista trabalha exclusivamente com a preocupação do mercado está a trair a arte. Pessoa escreveu os seus maravilhosos textos não para o mercado, mas para o baú onde os ia arrumando. Os anos 20 e 30 do século XX não estavam preparados para os receber. Morreu apenas tendo publicado o livro menor que foi a «Mensagem». Suspeito de que tinha consciência da sua grandeza. E, se assim foi, mais difícil lhe terá sido não ter destinatários para essa grandeza, gente que o lesse, críticos, leitores… Público, numa palavra.
Fischer salienta o carácter mágico da arte. Se for desprovida da magia que provém da sua natureza original, segundo ele, a arte deixa de ser arte. A arte tem a idade do homem e o homem foi, desde a sua origem e face à hostilidade da natureza, um mago. A magia da criação da ferramenta transforma um primata superior num homem. O homem produziu a magia que deu lugar à humanidade. É um produto de si mesmo. Só inventou deuses porque não entendia nem os mecanismos, nem o poder da sua própria magia. Não entendia também a natureza sobre a qual exercia essa magia. E precisava de explicar tudo isso. E a sua magia criou os deuses e a lenda de que tinham sido os deuses a criar o homem.
A mão precedeu o cérebro no desvendar dos mistérios. A agilidade da mão fabricou o utensílio: mão e utensílio passaram a ser indissolúveis. O homem primitivo não distinguia a sua actividade do objectivo que a determinava – actividade e objectivo formavam uma unidade. A abstracção veio depois com o advento da palavra. E a palavra veio substituir a magia. Transformou-se ela própria em magia. Os homens eram todos magos. Com a palavra consolidou-se o salto entre animal e ser humano. Com a palavra nasceu a poesia.
Esta é uma das principais funções da arte contemporânea. Finalmente, o homem que se tornou homem pelo trabalho, que superou os limites da animalidade transformando o natural em artificial, o homem que se tornou um mágico, o criador da realidade social, será sempre o mágico supremo. A arte, em todas as suas formas, era uma actividade comum a todos e elevando todos os homens acima do mundo animal. Mesmo muito tempo depois da quebra da comunidade primitiva e da sua substituição por uma sociedade dividida em classes, a arte não perdeu seu carácter colectivo. Somente a verdadeira e autêntica arte consegue recriar a unidade entre o singular e o universal. Somente a arte consegue elevar o homem de um estado fragmentado a um estado de ser íntegro, total. Sem arte não há humanidade.
Sim, a poesia é necessária.
A poesia é necessária! Aí está uma verdade.
ResponderEliminarGostei de ler, Carlos. Muito bom, este texto.
ResponderEliminarSem a poesia o mundo seria muito mais cinzento. Não haveria lugar para o sonho.
ResponderEliminarPaxiano
'Os chamados opinion makers são, em regra gente inculta ou desonesta, por vezes as duas coisas.'
ResponderEliminarE os mecenas reis, senhores feudais ou burgueses não o eram?
Apesar da 'mercenarização', antes, ou 'mercantilização', depois, isso não impediu de haver boa arte e literatura.
Quem quer ser profissional da coisa, e não simples amador, seja-o, com qualidade e sem queixume ou pedinchice.
Olá Pedro! Os opinion makers nem sempre são gente inculta - por exemplo, o Marcelo Rebelo de Sousa, de inculto nada tem - mas é extremamente tendencioso - o que recomenda, quase nunca é recomendável. E não é porque se engane. Não estou a defender a pedinchice, nem a lamentação sistemática - defendo, no que se refere à difusão da cultura, na política do livro, por exemplo - uma linha de orientação que não leve em linha de conta apenas os factores de mercado. Falando ainda de livros - um autor pode ter 500 ou mil leitores (que é um mercado que não torna a edição rendível) e ter culturalmente mais interesse do que escritores, como a Margarida Rebelo Pinto, que vendem 40 mil exemplares, mas do ponto de vista cultural são o que se sabe. Uma política correcta, viabilizaria obras de interesse cultural,artístico ou científico, com um mercado reduzido, fazendo compras institucionais que viabilizassem as edições. Os escritores ficam entregues ao mercado, ao marketing que rodeie as suas edições. como se o que fazem fosse um detergente ou um iogurte. É contra isto que falo.
ResponderEliminarA citação sobre os fazedores de opinião é do teu texto.
ResponderEliminarO que quis dizer é que numa sociedade dominada pela economia e pelo mercado também as artes o têm de ser - por mais wishful thinking que tenhamos (não resisto à provocação, em Portugal parece que fica sempre bem um estrangeirismo entre artistas e intlectuais; agora também entre economistas e gestores).
Portanto muito lixo será criado, e pelo meio algumas pérolas ("A pérola é resultado de um processo de defesa contra parasitas ou corpos estranhos que se introduzem na concha").
No meu cepticismo espero pouco das políticas culturais, espero algo mais da criação cultural.
Logo num texto destes havia de sair "intlectuais" para me embaraçar, leiam lá "intelectuais".
ResponderEliminar"Quem quer ser profissional da coisa, e não simples amador, seja-o, com qualidade e sem queixume ou pedinchice." Pedro esta é daquelas verdades ... Ora bolas, não se pede isso a qualquer um? Quem vendem os livros são as Margaridas. E o conteúdo é lixo! Ela e semelhantes são aquí as boas profissionais, porque vendem? Com uma população com enorme ileteracia, porque acham que o Saramago foi um best-seller com o Memorial do Convento? As Brumas de Avallon (na mimha opinião outro lixo)vendeu como o Memorial. Os autores são os dois bons?
ResponderEliminarÉ isso Ethel (alguma vez havíamos de estar de acordo nesta matéria...) - o marketing deturpa a verdade das coisas: uma produto cancerígeno, bem promovido, vende mais do que um produto biológico saudável. O Saramago vende muito e é muito bom; mas vende porque a acção de marketing foi eficaz. O Carlos de Oliveira, um escritor de grande qualidade (não inferior ao Saramago) vai ficando esquecido, pois não teve uma operação de marketing a acompanhar as suas edições. E os escritores estão à mercê do mercado. Claro, como diz o Pedro, nem todos têm qualidade que mereça ser divulgada; mas deixar que sejam os «intlectuais» (boa Pedro!) das agências de publicidade a decidir, é triste. Em França, para não irmos mais longe, existe esse apoio institucional ao escritor considerado válido, embora não comercial. Dirás: não é o próprio escritor que decide; o escritor tem sempre tendência a considerar-se um génio injustiçado. Mas, falo por mim, aceito ser julgado pela minha associação de classe, segundo critérios que eu compreenda - embora possa depois discordar deles se me forem desfavoráveis... - ser julgado por imbecis iletrados, custa mais. Fiz-me entender?
ResponderEliminarSabes de uma coisa? Acho a comunicação um desafio! Penso que há muito que nos entendemos sobre este assunto. Agradeço ao Pedro a oportunidade que abriu ao nosso esclarecimento.
ResponderEliminarJá aqui dei parte da experiência que tive com um grupo de pessoas.Andavam com os livros do pivot de TV debaixo do braço e nenhum (tive ocasião de lhes perguntar)lera o Eça. Está tudo dito.
ResponderEliminarAgradeço ao Carlos Loures este excelente texto de história e enquadramento social da cultura. Há uma referência que me lança para outras esferas: a esfera científica actual quando falas do Homem transformar o natural em artificial no sentido da evolução. Essas questões levantam, actualmente, problemas mais complexos e discutíveis quando, por exemplo, se trata de patentear matéria viva. O mundo infindável de discussões a nível científico, filosófico, jurídico, religioso, etc. a que dão origem não pode, de forma alguma, ser ignorado pela cultura contemporânea. Seria uma área de discussão a abrir, mais tarde ou mais cedo, no Estrolábio.
ResponderEliminarÁrea bem importante, Augusta Clara, vamos a isso.
ResponderEliminarAndei lá, há uns anos, bem metida,Luís. Fez parte dum trabalho de provas que tive de prestar. Entretanto, com a velocidade a que tudo se passa actualmente, já muita água passou debaixo das pontes e é necessário um trabalho de actualização que não me desagradaria nada fazer, mas em que gostaria de ver mais alguém interessado. Lá iremos!
ResponderEliminarÓptimo! bem interessante, eu na minha modéstia estou disponivel.
ResponderEliminarÉ o eterno problema da arte pela arte e da arte ao serviço de.Sinto-me dividida. Se por um lado, penso que a arte é na sua essência despida de tudo o que a possa condicionar, por outro lado, penso que a causa a pode levar tão longe quanto a sua essência.
ResponderEliminarOutro problema é distinguir arte de não arte. Fischer tem razão ao salientar o carácter mágico da arte. Sem essa magia deixa de ser arte. E aí é que a fronteira é difícil e está profundamente pervertida.O marketing,advertising for selling (cá vai o estrangeirismo) é sem dúvida um dos grandes responsáveis.
Carlos. Quem decide o que é "boa arte"? Os do meio? Olhem os subsídios ao cinema português.
ResponderEliminarSão os críticos (o meio) que "criam" os autores e não os publicitários (o veículo).
O talento tem clientes e é tão mercadoria como o resto. A história de ser artista , enfim.
Num programa do Joel Costa, (conhecem decerto)dum destes dias, sobre o cantor lírico e mecânico da Fiat, Bruno Prevedi, ele dizia na introdução; "Saber solfejo a potes é uma coisa, ser artista musical é outra muito diferente", e que, "há uns fulanos que tiraram carta de contrabaixo, oboé, ou violino, levam a vida com essa profissão e são chamadas artistas para todo o sempre".
Não me refiro a ti Carlos, acho que és poeta, pelas razões que já te disse e não por quereres ser. Agora que a maioria só tem carta, só. É como a carta de culto, eu ando mais à boleia.
O assunto é complexo, cheguei tarde ao saloon e tu daqui a pouco és capaz de estar em "estado de Scalke".
Eu, quando andava no 5º ano, para não dar gramática perguntei ao professor o que era poesia, e ele andou todo o mês de Junho (um calor do caraças em Castelo Branco) a dar exemplos. Acabou por admitir que só soube quando leu " a tabacaria" (A Tabaqueira?) do Fernando Pessoa já com o curso tirado. Mas também sei (sei bem) quando não é arte. A maior parte das vezes é técnica melhor ou pior dominada.
ResponderEliminarMeu caro Carlos Mesquita, esta conversa começou em Agosto quando o texto foi publicado a primeira vez. Baseia-se na tese defendida por Ernst Fischer em "A Necessidade da Arte", Ernst Fischer (1899-1972). Fischer afirma que «a arte é ela própria uma realidade social». E, homem de formação marxista, diz também que a sociedade necessita do artista. E aqui é que bate o ponto - a opinião pública, «a sociedade», tem o seu gosto artístico formado pela comunicação social, pelos opinion makers... Ou seja, respondendo à tua pergunta, quem é que decide o que «é bom ou mau»?, respondo-te - o mercado. A arte está sujeita às leis do mercado. E isso perverte tudo, porque (falando de livros) iguala um excelente Saramago a um apéssima Margarida Rebelo Pinto, ambos superados por um inqualificável Paulo Coelho, que é o escritor de língua portuguesa que mais vende. Onde quero chegar? O mercado não se preocupa com a qualidade - um mau escritor, desde que devidamente sustentado por uma hábil operação de marketing, ultrapassa outro que escreva melhor, mas que não tem esse apoio. O capitalismo converte tudo em mercadoria.
ResponderEliminarCarlos, o capitalismo, cria necessidades nos cidadãos para vender. Quem lê a Margarida Rebelo Pinto não sabe se aquilo é ou não escrever bem, mas preenche-lhe a imaginação por nunca ter feito sexo em cima da mesa da cozinha...
ResponderEliminarDe facto já tinha lido isto em qualquer lado. Desculpem lá. Mas repara que marxistas tens desde; a arte pela arte, arte pela sociedade até à inutilidade da arte.(Kandinski, Rodchenko, Bayer). Refazer a matéria ou alimentar o espírito. Estava a pensar fora dessa discussão, como os artistas (nos dois sentidos) que recebem subsídios para durante muitos anos andarem com uma única peça. Já recitam Gil Vicente com a criatividade dum padre a dizer o pai-nosso. Não saberia quem apoiar se me dessem licença. Escrever bem não é critério. acho. O que digo é que há mercado para a qualidade, - para o que entendo por qualidade - tenho centenas de livros e não são desses autores que referes, e também tenho muita palha que escusava ter, catalogada como arte.
ResponderEliminarParece-me que não estamos sintonizados. E só por isso não estamos de acordo. Nada do que dizes, contradiz o que eu digo. Claro que há mercado para a qualidade. O problema é que a falta de qualidade, desde que suportada por um marketing eficaz, também vende. É só isso que condeno - um livro ou um iogurte, são vendidos da mesma maneira. Um livro não é um objecto sagrado, é um produto, eu sei. Mas devia haver mecanismos diferentes para a promoção de livros e sabonetes. Isto não cabe em comentários. Está prevista uma semana para discutir o livro e os seus problemas.
ResponderEliminarTenho ideia que é preciso, neste debate, recuperar diversos níveis de abordagem do tema, que me parece andarem um tanto misturados.
ResponderEliminarÉ certo que o "mercado" abafou a opinião mais informada, confinando-a a raríssimas publicações, de escassa distribuição e leitura. Os antigos suplementos culturais desapareceram e os seus sucedâneos gastam muito pouco espaço com as artes "eruditas", espalhando-se largamente pelos produtos da "cultura de massas".
Sempre estive muito ligado às artes plásticas. E, neste campo, quem define o que é Arte, actualmente, é um conjunto mais ou menos fechado de críticos (todos mui sábios), que procuram ansiosamente o que pode ser mais modernaço e não o que tem mais qualidade: antes da arte, perseguem a obtenção de um estatuto para eles próprios: quanto mais arrevesado e hermético o que escrevem, menos riscos correm de ser contraditados. Há textos "críticos"que me fazem rir e recordam-me a "tortura" infligida pelo Nani Moretti, num dos "quadros" do "Caro Diario", a um crítico de cinema, lendo-lhe alguns dos textos que ele próprio escrevera. Com a complexificação e variedade dos meios de expressão, o modo de equacionar a arte mudou inevitavelmente, mas não raro num sentido que toca o absurdo. A multiplicidade de "escolas" e "tendências" também contribui para a bagunça.
Nada disto contraria a maior parte das coisas que aqui li, necessariamente divergentes.
Mas queria chamar a atenção para uma vertente elitista, que, pelo menos nas artes plásticas (onde os valores e a difusão das obras têm características diferentes das de âmbito literário), tem também uma interferência, e bem grande - mas distinta na origem! - no mercado, facilitando a falsificação da qualidade e provocando o desvio de alguns conceito axiais orientadores (não determinantes!) para uma "localização" semelhante à "nuvem" do electrão...
São exemplos conhecidos o pretensioso prémio da Tate (não estou a falar do deste ano, que até me parece aceitável - embora com um palavreado diferente do que já li na apresentação de uma obra da artista nos jardins da Gulbenkian - já que premeia um trabalho sério sobre a percepção dos destinatários, questão que há muito vem sendo abordada, sem que os artistas que me parecem mais interessantes mereçam a atenção devida, por parte "dos alumiados"...) e as "feiras" de arte, incluindo as famosas "bienais".
A última Bienal de Veneza que visitei (não estou certo qual foi - há 6 anos, talvez? - porque nem o catálogo comprei...) deu-me muito pouco que me agradasse e demasiado que me indignasse, pela vacuidade e pela gratuitidade de infindáveis pseudo-provocações e propostas de "experiências". E considerei-a bastante pior do que a imediatamente anterior que calhou também poder visitar.
Paulo Rato