Carlos Loures
Está a começar uma nova época de futebol e vou hoje fazer uma reflexão sobre a real importância do futebol. Sem a mínima esperança de que produza algum efeito - as paixões exacerbadas, os insultos aos adversários, a marginalidade das claques, a corrupção, o aproveitamento político, a demagogia barata de dirigentes cediços, tudo isso vai andar à solta. Mas eu gosto de pregar no deserto. Cá vai.
Gerhard Vinnai (Estugarda, 1940) é um psicólogo social alemão. Até à sua aposentação em 2005, foi professor na Universidade de Bremen . Escreveu um ensaio a que deu o título O futebol como ideologia. No prefácio da edição portuguesa – datada de 1976 – Vinnai, incorrendo num lugar-comum, afirmava que Portugal era um país em que «o futebol e Fátima competem ainda no esforço de consolar as massas da miséria da sua vida de todos os dias». De 1976 para cá, a situação alterou-se substancialmente – para melhor numas coisas, para pior noutras – Fátima e o fado (Vinnai esqueceu-se do fado), perderam terreno, mas o futebol que naqueles anos em que a luta política assumiu um papel importante na vida dos cidadãos, perdeu protagonismo, veio depois a recuperar o seu papel cimeiro nas preocupações mais ingentes de grande número de cidadãos.
Ainda me lembro, durante a ditadura, de ver em cafés, bares, em barbearias, em lugares públicos onde se juntavam homens, pequenos cartazes impressos que diziam . «Proibido discutir política e futebol». Não se podia discutir política porque era perigoso, a PIDE tinha olhos e ouvidos onde menos se esperava. Já discutir futebol era uma fonte de zangas e de desordens. Imaginem um bar ou uma taberna – vinho e futebol era uma mistura explosiva. Daí os cartazes. Mantenho uma opinião que tenho expendido abundantemente - discutir futebol na óptica clubística, reduz a capacidade de raciocínio, transformando pessoas inteligentes em mentecaptos. Gosto muito de futebol e até tenho uma forte e indeclinável opção clubística. No entanto, nunca atribuí ao futebol, que é só um jogo, a importância que vejo muita gente conceder-lhe. É um jogo e é um negócio. Mas hoje só quero falar do jogo e da sua incidência, quase sempre negativa, nas mentalidades.
O período de férias que atravessamos é uma época boa para abordar este tema. O ambiente está calmo. Ainda não entraram em funcionamento as utopias clubísticas e as teorias da conspiração que cada clube criou para seu uso exclusivo. Embora nessas teorias haja mais verdade do que seria desejável – corrupções, negócios obscuros, influências políticas… Será que um simples jogo justifica quer as cavilações imaginadas, quer as manobras sujas verdadeiras? Acho que não. O futebol bem jogado, sem trapaças, é um jogo muito belo. Mas é só isso. Um jogo. Ganhe quem ganhar, perca quem perder, nenhum dos problemas que afectam os portugueses ficam mais perto de ser resolvidos – desemprego, subida dos índices de pobreza, o estado do ensino, da cultura e da saúde, o baixo poder de compra, a marginalidade e a corrupção, ou seja, todos as doenças endémicas do País estarão longe de ser erradicadas e não será o futebol que as erradicará. Pode é fazê-las esquecer. Isto, por muito bem que o campeonato corra a uns e mal a outros.
Acho muito engraçado quando ouço dizer a um adepto de qualquer destes clubes grandes que ser benfiquista, portista ou sportinguista é qualquer coisa de especial, de único. Embora eu próprio experimente essa sensação - sobretudo com o estádio cheio e com a águia a voar - de quem basta estender os dedos para tocar o céu (dizem que o ópio provoca uma sensação semelhante). Acho graça, porque somos todos iguais, com reacções iguais. Por exemplo, se o futebol do Benfica anda, como andou em épocas anteriores, na mó de baixo, descubro-me a preferir falar de futsal ou de basquetebol ou de qualquer outra modalidade em que o meu clube esteja a sair-se bem. E se não estiver a sair-se bem em nenhuma, derivo para a música sinfónica ou para a banda desenhada.
Naturalmente que nada disto é exclusivo dos adeptos portugueses. Em Paris, nos tempos do Racing Paris, o Red Star (fundado pelo mítico Jules Rimet), do Stade de France, o futebol era o desporto-rei. Quando as equipas do Sul, como o Marselha começaram a ganhar os campeonatos, a pouco e pouco, os parisienses foram deixando de ir ao futebol. O Red abandonou o futebol em 1948, o Racing em 1964 e o Stade em 1966. Hoje, com o pífio Paris Saint-Germain a perder jogos, preferem o râguebi. Já, aqui há uns anos, me disse um parisiense «isso do futebol é lá para os marselheses», franzindo o nariz como se estivéssemos perto de peixe estragado.
O futebol transformou-se na ideologia de muitos milhões de portugueses de Norte a Sul. Claro que agarradas ao futebol vêem outras coisas, tais como ancestrais problemas regionalistas. Como já tenho dito, chamar mouro (ou galego) a alguém não constitui objectivamente uma ofensa. Porém, subjectivamente é-o. E é uma agressão sem sentido, pois Portugal, desde as suas origens, sempre foi um vórtice onde se sumiram etnias.
Pensando bem, o futebol não tem qualquer importância. A não ser que o transformemos em ideologia ou em religião. Mas essa não é uma atitude sensata. O nosso clube estar a ganhar ou estar a perder, pode-nos dar alegria, boa-disposição, como disse Vinnai »distrair-nos das misérias das nossas vidas de todos os dias», mas para o que verdadeiramente importa, não conta. É igualzinho a zero.
Um zero tão redondo como uma bola de futebol.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
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Não interessa nada, Eu gosto de ver e analisar, joguei futebol muitos anos e comecei cedo, pagavam-me para jogar, foi como uma vacina. Ainda me lembro, dentro da cabine, gajos aos berros, assobios quando gritavam o meu nome no altifalante do estádio, eu que tinha 17 anos, ainda não tinha tido tempo de fazer mal a ninguem...
ResponderEliminarO Benfica perdeu ontem, o futebol não tem importância (Carlos, Luís, Dixit).
ResponderEliminarFeito o comentário sério, uma nota sobre o texto. A trilogia dos efes, "Fátima, futebol e fado" também não teve a importância que a propaganda contra o poder obscurantista lhe deu. Eram os entreténs baratos de um regime de botas-de-elástico; tivessem eles os meios de hoje e também fariam os reality shows, as novelas Freeport e os concertos pimba. Agora que o fado foi adoptado pela erudição, como a Igreja papou as práticas pagãs, e Fátima é a mais lucrativa partecipada nacional da holding do Vaticano, só resta o futebol para responsabilizar pela alienação das massas. Não pago quotas a esse clube. Sempre vi nos sindicatos militantes com "A Bola" debaixo do braço, e até em manifestações. Quase toda a gente que conheço, esclarecida, empenhada, tem um fraquinho por um clube (quando não é uma doença pelo clube) e não é por isso que deixam de se embrenhar em causas.
O problema em Portugal é que poucos gostam do futebol como jogo; dizia alguém que cá ninguém gosta de futebol, gostam do seu clube, e só quando ganha. É verdae é pena mas não há nada a fazer.
O princípio do teu comentário é a negação do que eu quis dizer (mas é uma ironia aceitável) - o texto estava escrito e em rascunhos muito antes de o Benfica ter perdido. É justamente contra o futebol como preocupação central que as palavras deste post se dirigem. Estou de acordo que o cliché Fátima, futebol e fado, é um exagero que o germânico professor interpretou à letra.
ResponderEliminarTambém eu gosto de futebol, ou melhor, gosto de ver o Benfica a jogar bem e a ganhar, sentado ou meio deitado no sofá cá de casa, com uma bebida bem pertinho. Ver o erro estratégico do JJ, o tal que é o rei da estratégia, também me dá um certo gozo (será por que assim justifico a derrota do Benfica, com a burrice do seu treinador?).
ResponderEliminarClaro que gostaria muito mais de discutir outras coisas, como gostaria também de ter tido reacções às provocações que deixei no comentário a «Esquerda precisa-se», do Carlos Loures, mas verifico que, afinal, o futebol é mais importante e que, para ter alguma emoção na vida, tenho de continuar a ver o Benfica na televisão, com a tal bebida ao meu lado (qualquer dia tem de ser com a garrafa!).
Nós criticamos as forças da NATO no Afeganistão, especialmente as forças americanas, mas não falamos da cultura da papoila e não tentamos saber a razão por que a NATO não se preocupa com isso, mais interessada em matar civis inocentes; mas não criticamos com a mesma veemência o que hoje se joga por detrás do futebol: as negociatas, a lavagem de dinheiro, a promiscuidade política/futebol, etc., etc.
O mais importante para a maioria dos portugueses, neste momento, é que o Benfica ganhe à Académica no próximo fim-de-semana. E, já agora que ninguém me ouve, espero bem que ganhe!