terça-feira, 17 de agosto de 2010

Um buraco na rede

Adão Cruz

(Dedico este conto à amiga Andreia Dias, em homenagem ao seu trabalho e como libelo contra os caçadores)


Acordei a meio da noite e não fechei mais os olhos. A insónia levou-me onde bem lhe apeteceu.Gemi ao estalar do coração de uma mãe, senti o amargo do choro convulso de um pai, reabsorvi a minha dolorosa resignação…um barco e as amarras que o prendem aos olhos esbugalhados do cais, amarras que se despedaçam, pois ninguém lhes sabe desfazer os nós.

A madrugada de hoje começa a clarear. Quem olha através da rede da janela sem vidros julga que vai nascer uma amena manhã de primavera, mas em breve ela parecerá vomitada do ventre de uma fogueira.

Passarinhos coloridos salpicam de gorgeios o silêncio morno do amanhecer. Um grande insecto marra nervosamente de encontro à rede, numa volúpia incontida de liberdade. Eu e aquele moscardo, à procura de um buraco na rede! De um salto, corri da cama até ao chuveiro improvisado que borrifava sobre mim os mais deliciosos minutos do dia. Enquanto a água escorria em fios esganados, eu ia antevendo o prazer de uma caçada matinal às rolas. Iria pedir a carabina ao libanês Senhor Heyle, o qual, àquela hora, ensonado, não se lembrava que não gostava de a emprestar. De qualquer forma, a mim nunca a recusaria, pois precisava de mim como médico.

Postar-me-ia a cem metros do arame farpado, por detrás do poço do jagudi, bem perto do canavial. Vindas das árvores que se encontram no baixio junto à bolanha, as rolas atingem, sem qualquer desconfiança, o mangueiro que está mesmo por cima da minha cabeça. Será só apontar. Mas…nem apontar foi preciso, pois as rolas não vieram, e as que vieram fugiram, sem hesitações de pouso, como se alguém as tivesse avisado do lado de lá do canavial.

Quando se vive no isolamento, sobretudo na solidão da guerra sem sentido, o tempo jamais passa, mas as fracções de tempo parecem voar como estas rolas que escarnecem de mim. Não sei se adormeci, penso que sim, movido pelo zumbido melífluo e hipnotizante de um desses enxames de abelhas selvagens que, à volta de um galho de cajueiro, ordenam a sua inquietante anarquia.

Quando acordei e olhei para cima, uma rolita inocente, vestida ainda com o castanho torrado da primeira penugem, esticava o pescoço curioso para ver quem eu era. Estava tão perto que eu lhe enxergava os olhitos faiscantes e quase ouvia as primeiras falas que as cordas vocais começavam a ensaiar. Instintivamente, colei-me à arma e só vi a cabecita inquieta estremecendo na ranhura do ponto de mira. Se ao menos ela fugisse! Se ao menos ela fugisse!

Apertei o gatilho, e como estava tão perto, nem dei pala queda do seu minúsculo corpo.

Caiu o meio-dia sob a forma de um sol escaldante que só as árvores mais frondosas conseguiam coar. Espetei os olhos na avesita moribunda e vi que um fio de sangue lhe pintava o bico. Senti profundamente o gosto acre daquele sangue. Soube-me a guerra, a roubo, a crime, a futuro sem vida e vida sem futuro, a terra calcinada, a chacina. Torci-lhe três vezes o pescoço e atirei-a ao regato mais próximo. Puxei de um cigarro e tentei, com ele, acabar a tristeza e a amargura desta manhã.

3 comentários:

  1. A arte e a vida andam a par. sabes que um amigo meu teve a sua primeira arma de caça éramos adolescentes. Fui com ele experimentá-la. Um pobre pássaro mexia-se, nervosamente, na árvore mais próxima, dei o meu primeiro tiro, e o único contra um animal e, por mal dos meus pecados, acertei. Ainda hoje choro aquela morte inutil, eu, um nabo que não acerto em nada.Quem vai ter pesadelos sou eu após ler este teu belo texto.

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  2. Muito obrigada... guardarei para sempre este conto com muita estima...
    Andreia

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