quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Alçapões da linguagem: os "apenas assalariados"

Paulo Rato


Acrescentado de: "Meditações sobre a existência de "empresários de esquerda" e relacionados motivos de apoquentação de Pedro Godinho"

I – O Le Monde

O Le Monde foi fundado em 1944, sob os auspícios do próprio general De Gaulle. A "Sociedade de redactores" foi constituída em 1951. Nos finais dos anos 60, o jornal estruturou-se em duas sociedades: uma de redactores, outra abrangendo os restantes profissionais.

Os tempos eram outros. O Mundo mudou. A imprensa escrita de referência (e até a outra...) foi enfrentando dificuldades crescentes e múltiplas. O Le Monde seguiu os caminhos que, em cada momento, surgiram como os mais adequados à manutenção do jornal e outras publicações do grupo, de acordo com as decisões tomadas pelos seus responsáveis.

II – O Alçapão

A utilização, por Pedro Godinho, da palavra "apenas", para caracterizar os assalariados é um dos alçapões que invoca: explicita a diferença de nível que estabelece entre "empresários" (mesmo mesmo mesmo empresários!, como esmiuçariam os "Gato fedorento") e os "apenas", que, como se vê logo, não sendo empresários (oh! oh! oh!), não sabem empreender... A bem dizer, não são adequadamente ungidos pela entidade divina de serviço, como os reis do antigamente... Portanto, não têm legitimidade para empreender, gerir, abrir falência, fazer as coisas decentes e os disparates que o demiúrgico funcionário reservou para os eleitos do empresariado.

III – O Mistério dos Empresários de Esquerda

É este caso, dos "empresários de esquerda", um misterioso mistério, para cuja dilucidação ousarei contribuir.
Nesta coisa de haver Terra e pessoas à superfície da dita, a tentarem organizar-se em civilizações, que lá vão suando para progredir, desde os bons tempos em que andava tudo à mocada, com intervalos para as tarefas necessárias à sobrevivência de cada grupo ─ incluindo, com sorte, a oportunidade de dar mais umas mocadas em indivíduos de outros grupos ─ sempre houve diferenças: não só na arte da traulitada, mas também, por exemplo, no modo de analisar a realidade e de se posicionar perante ela, isto é, de a pensar.

Ora, nesta caminhada histórica, não encontro nada de extraordinário na existência de empresários, "apenas assalariados" e outros tipos de seres humanos classificáveis ideologicamente. Diria que, mais do aclarar-se, aqui se dissolve o tal mistério.

Numa vastíssima escala utilizável na caracterização de cada indivíduo, em que expressões como "esquerda", "centro" ou "direita" servem, como em tantas outras áreas, para simplificar uma distribuição tipológica, há quem tenha estratégias e práticas de gestão diversas, de acordo com princípios ideológicos diferentes. Muito mais distintas do que o comum telespectador ou leitor das mais "prestigiadas" revistas económicas imaginam: porque tudo se situa em relação a referências ideológicas, quer os seus protagonistas queiram ou não...

E, além disso, há também uma actuação na sociedade, não raro contraditória, o que também não é caso para berrar pelo Harry Potter.

Como quase tudo o que entra na linguagem humana, estas nomenclaturas surgem circunstancialmente (neste caso, radicam-se na época da revolução de 1789 e na "arrumação" partidária da Assembleia Nacional Francesa).

IV – Das razões e necessidade da existência de quem pense e actue à esquerda

Para quem não acredita nos actuais mitos urbanos de que as ideologias morreram e a história está moribunda ─ ou outras patacoadas muito em uso para distrair o cidadão do exercício pleno da sua cidadania ─, empresários como Bill Gates, financeiros como George Soros, e outros são um bom exemplo de detentores de grandes fortunas (muitos deles empresários) que, social e politicamente, actuam "à esquerda", apesar de ─ sem pôr em causa a aspiração de contribuir para um avanço civilizacional efectivo, enquanto fundamento da sua prática filantrópica ─ eu costumar dizer que, quando Gates se empenha em conseguir uma aplicação nunca vista dessas grandes fortunas em acções de beneficência, está a inventar um grito, ainda que murmurado, o SOA: "save our asses".

Porque, quando as "crises" se aproximam tão perigosamente do ponto em que os dirigentes políticos de todo o orbe, para não beliscar o "sistema", não conseguem tomar uma medidazinha que seja para o pôr na ordem, parecendo tão-só empenhados em multiplicar as multidões famintas, doentes e já sem nada a perder; quando os bonzos de tal sistema falido, petrificados nas suas análises, se mostram incapazes de as alterar e insistem nas mesmas mezinhas bolorentas e fora de prazo (tipo Medina Carreira e outros venerandos fantasmas da "ciência" económica); então, estão criadas as condições de todas as grandes broncas históricas.

Só que, dantes, essas condições davam um Atila, depois um Napoleão, mais tarde um Hitler; e o âmbito das tragédias foi-se alargando.

Agora... estamos numa escala...

Chamam-lhe "globalização", não é?

É por isso que ainda vai havendo empresários e cantoneiros "de esquerda". E são indispensáveis ─ ou "eram", balbuciará o último empresário "sem ideologia"...

2 comentários:

  1. Meu caro, o que me parece que aqui se levantou de importante é que "há pessoas de esquerda que são empresários" bem diverso de "empresários de esquerda", pois as regras de funcionamento de uma organização são iguais para todos.Sem as técnicas de organização e gestão, não há empresários de sucesso. E quanto ao Gates, só mostra o que se sabe há muito, o lucro não é demónio nenhum, tem a ver com a sua aplicação. Se o lucro for aplicado num "porche amarelo" é uma coisa bem diferente de ser reinvestido e, com isso, criarem-se mais postos de trabalho.Olha a Fundação Champallimoud, devolvendo à sociedade 100 milhões do que ganhou.Sem lucros a sociedade não avança, não há investigação, nem inovação, nem formação...o pior é que isto chegou onde chegou.

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  2. Lamento que produtores que tinham posição de controlo dela tenham abdicado passando a assalariados, apenas.
    Uma organização económica mais socialista não assenta no assalariamento.
    A ideia de autogestão deixou infelizmente de ser reivindicada.

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