sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Como se fora um conto - A Vizinha

José Magalhães


Qualquer pessoa que esteja no sítio certo, à hora certa, tem a possibilidade de testemunhar uma parte da história de todos nós.

Todas as histórias deveriam começar por “era uma vez…”.

Esta não foge à regra.

Era uma vez uma rua que tinha uma rotunda mesmo ao fundo, e que tinha o nome de uma cidade do Magrebe.

Por lá parávamos, todos os fins de tarde em amena cavaqueira, o Zeca do gás, meu saudoso amigo que partiu cedo na vida e de quem todos gostávamos, eu e mais um ou outro companheiro, mesmo à porta do João da padaria.

Esta rua, que tinha o nome de uma cidade do Magrebe, era uma rua onde nunca se passava nada. Era uma rua amorfa.

Bem, não totalmente. Durante cinco minutos em cada dia, de segunda a sexta-feira, e sempre ao fim da tarde, alguma coisa mexia. . .

Quando passava na rua, a vizinha não deixava ninguém indiferente.

Mexia com os sentidos todos. Todos os cinco sem excepção.

Os olhos lacrimejavam e impediam uma visão perfeita (às vezes).

Os ouvidos deixavam de ouvir tudo o que se passava em redor, concentrando-se no som dos tacões a baterem, ritmados, na calçada.

Deixava de se sentir fosse o que fosse, por via de um formigueiro nas mãos. Os dedos tamborilariam na mesa (se a houvesse) ou ficavam irrequietos nos bolsos.

O rasto de perfume, bloqueava qualquer outro cheiro. Havia até quem voasse atrás dele, mesmo sem dar por isso.

Um sabor a papel de música provocado pela boca seca chegava de imediato.

Ao longo do tempo que durou a história que agora conto, e que quase chegou a um ano, na imaginação criada nas mentes dos sempre presentes, provocada pela passagem da vizinha, muitos mataram a sede das suas muitas léguas de isolamento sem bandeira nem hino. Desde exércitos a caravanas, montados em cavalos e camelos ou simplesmente a pé, desde crianças a adolescentes e a adultos, durante o tempo que durava o repicar das Avé Marias no sino da Igreja, o sorriso de felicidade inundava os rostos. A atmosfera de degelo embrutecido, dava lugar ao cantar das águas de Março em pleno anúncio da Primavera. Como que por encanto, despiam a carga negra que as suas vidas lhes vestiam logo pela manhã, e os sonhos e a esperança regressavam como que para sempre.

Deus bafejara a vizinha com a perfeição das formas, e quem a olhava, com o sonho do mel, qual perfume da antiguidade, e remédio para todos os males ou alimento para a felicidade eterna.

A vizinha trabalharia por certo, num local importante. Sempre vestida a rigor, fosse Verão ou Inverno. O cabelo bem arranjado, as unhas das mãos e dos pés (quando se viam) impecavelmente envernizadas. A roupa, bem, a roupa deveria ser de marca, ou então de costureiro.

Era assim que todos a viam.

Ninguém lhe conhecia namorado ou marido, nem qualquer outra coisa do género. Corria a ideia de que vivia sozinha, sem a companhia de cão ou gato.

Não se sabia de onde vinha nem para onde ia. Simplesmente aparecia à porta do 37 bem cedo da manhã, e era por lá que entrava aos fins da tarde.

Quando regressava do seu (suposto) trabalho, a rua parava.

Um dos merceeiros da rua, solteirão praticante e já entrado na idade, aparecia à porta, sorrateiramente. Baixo, forte e razoavelmente simpático, era o comerciante mais antigo que lá havia. Sempre esteve por lá. Ninguém se lembra do tempo em que ele lá não estava. Vivia quase só. Desde a morte da mãe e mais recentemente da irmã, solteira como ele e também já entradota, que assim era. Como companhia, o canídeo de raça cão, branco, a que dera o nome de Berlim.

Lá ao fundo, já na rotunda, o barbeiro, por cujas mãos já todos os habitantes da rua e arredores tinham passado, olhava pelo vidro da barbearia, esquecendo por momentos o seu sonho de criança, que sempre o acompanhara ao longo das horas do dia e da noite, e que era, correr mundo solitariamente numa barcaça. Apesar desse sonho, ou por causa dele, o Vila Verde, assim lhe chamavam por causa da terra onde tinha nascido, era casado, sabia-se, e não tinha descendência.

O outro merceeiro, homem que se considerava importante muito por via de ter um filho letrado, com casa aberta quase na esquina da rua do meio, virava-se de costas, não fosse a sua mulher notar o olhar babado e quase lascivo.

O farmacêutico, filho e neto dos farmacêuticos anteriores, há décadas estabelecidos na rua, anafado e pai de dois pimpolhos rechonchudos, compunha a bata imaculada e olhava de soslaio, esquecendo-se da freguesa que diariamante comprava os supositórios para a tosse.

O Neca alfaiate, que tinha sido cozinheiro na tropa quando estivera em comissão no ultramar, parava de trabalhar, não fosse o corte das calças do sr Antero ficar mal feito.

O Pedro sapateiro, lança um piropo de mau gosto, como de costume.

O empregado do café Avenida (chamava-se assim apesar da estreiteza da rua) dá um estalo com a língua, e o sr engenheiro, que dava aulas (privadas) de matemática e de física e que estava desempregado ia para dois anos, sentado na esplanada suspira e pensa que afinal a vida se não esgota no emprego que não tem.

Enquanto isso, e alheia a tudo, a vizinha continuava com o seu passo pausado, descendo a rua em direcção ao largo.

A D. Aninhas, esposa amantíssima do António carniceiro, faz cara feia à sua passagem.

A criada negra do sr doutor médico, que ele mandara vir das áfricas vai para muitos anos, como era de costume e de bom tom em pessoas da sua categoria e nível social, funga e vira a cara.

A mulher do (importante) merceeiro, olha para ele, desconfiada, esperando uma reacção que ele acaba por não ter.

A empregada da D. Vitória que está divorciada do sr Coronel do Exército (na verdade era só Tenente-Coronel), está a limpar os vidros, empoleirada na janela do segundo andar do número 14, e nem repara em nada.

Dois cães ladram grosso ao sentirem os passos da vizinha. Outro, ao longe, responde.

Dois miúdos, em idade escolar, na pré-adolescência, falam alto um para o outro:

- “João, João, mica!” (o verbo micar, usava-se com frequência na altura, e significa, olhar, mirar, observar…)

A sra professora de música, viúva ia para mais de dez anos do sr Francisco, Chefe das Finanças da altura, e que estava ameaçada de exclusão da carreira docente por não aceitar os regulamentos da avaliação imposta pela sra Ministra, aprecia de longe a vizinha, com conhecimento e nostalgia. Também um dia, ela fora assim!

Impávida e serena, a vizinha passa com o seu pisar calmo e certo. Acostumada aos olhares da populaça, ignora tudo à sua volta, não vê ninguém. Nem se dá ao trabalho de se preocupar com isso. Não olha para ninguém. Não cumprimenta seja quem for.

Chegada a sua casa, mete a chave na fechadura, entra e desaparece até ao dia seguinte.

- “Até amanhã, vizinha!” Pensa cada um para si. No dia seguinte será por certo outro dia de sol.



A vida na rua que tem ao fundo um largo, rotunda como lhe costumam chamar, e que tem o nome de uma cidade do Magrebe, voltava ao rame-rame de sempre. Recomeçavam as conversas, os pensamentos ganhavam novos rumos, e a vida seguia o seu caminho.

Dia após dia, a sua passagem era intimamente esperada, quase que com sofreguidão.

E assim foi durante meses, até ao dia em que a vizinha não veio. Nem de manhã, nem de tarde. E nos dias seguintes também não. Estaria doente? Precisaria de ajuda? A preocupação aumentava a cada passo nas faces dos habitantes da rua.

E ao fim do quarto dia de uma angústia que se via ao longe, veio uma camioneta de mudanças e levou tudo o que havia na casa que tinha o número 37.

Assim, de uma penada. Quase a correr. Num instantinho.

A tristeza e a estupefação ficaram marcadas nas caras de cada um deles.

A vizinha nunca mais foi vista. Nunca mais apareceu.

A rua, que era também um pouco a minha, nunca mais foi a mesma. Ficou ainda mais amorfa e cinzenta do que tinha sido. De longe a longe, nas conversas que sempre surgem, ainda se fala dela, da vizinha, de quem nunca ninguém soube o nome. E essas conversas ainda traduzem nostalgia e tristeza.

Aquelas pessoas só lhes restou a lembrança de um período áureo da vida da rua que tinha uma rotunda mesmo ao fundo, e que ostentava o nome de uma cidade do Magrebe.

9 comentários:

  1. Zé, bem-vindo! Bonito conto.Abraço amigo.Luis

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  2. Sê bem-vindo José Magalhães. Um garnde abraço.

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  3. Um belíssimo conto, José Magalhaães. Ao lê-lo, senti-me no meio do neo-romantismo italiano, tão saborosa e de tanta saudade! Um abraço

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  4. Muito bom! Não o conheço mas dou-lhe os meus parabéns!

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  5. Quando um dia eu acordar, trato de guardar com cuidado e embrulhado em papel celofane o cheiro dele. Se te conhecer, podes ter a certeza que partilharei contigo, mas só se for em segredo, o aroma que ainda agora acabei de ler com esse texto. Sabe a café acabado de ser feito. Entra no corpo sozinho, tomando conta de tudo. Antes que eu respire de novo, lá está ele de volta dançar comigo.
    Se eu acordar, José, partilho contigo. Sabe a café.

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  6. Muito obrigado pelas mensagens de boas-vindas e pelos comentários ao conto.

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  7. Antes de ler este texto li o da morte do Chabrol e os comentários que iam aí nuns 15... E vai daí imaginei um filme. Talvez não francês, talvez mais italiano... Que bela entrada! Pena não poder ir ver a exposição! Para quando em Lisboa?

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  8. José Magalhães, este conto serve para arranque de um grande romance. E talvez também, como a Clara sugere, para início do argumento de um filme interessante. Como no início do Era Uma Vez na América (Sergio Leone), sem tanta violência.

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  9. Meus caros Clara Castilho e João Machado, muito obrigado pelos vossos comentários que muito me sensibilizam.
    Uma exposição em Lisboa? Quem sabe, um dia, com um convite apetecível isso possa acontecer. Para já, os meus conhecimentos na área da capital são muito limitados.
    Abraço

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