domingo, 5 de setembro de 2010

Eduardo Guerra Carneiro

Carlos Loures


Nestes dias que antecedem a grande «Maratona Poética», continuo a recordar poetas que conheci e que já não estão entre nós. Hojevou falar de Eduardo Guerra Carneiro.

A frase “Isto anda tudo ligado” já é antiga, mas quem lhe deu vida nova e foros de expressão erudita foi o escritor e jornalista Eduardo Guerra Carneiro, que a usou como título num seu livro de poemas «Isto Anda Tudo Ligado». E este título, como disse Jorge Listopad, numa nota publicada na «Colóquio-Letras», que aparentemente é um «slogan banal», tem sido centenas de vezes utilizado, por escritores, jornalistas, por músicos (como Sérgio Godinho) e não só. Creio que muitos que o utilizam já nem o relacionam com o grande poeta e a maravilhosa pessoa que foi o Guerra Carneiro.

Não é o meu caso. Fui muito amigo e companheiro de luta do autor destas palavras.

Na fotografia abaixo, tirada em Novembro de 1962, em Coimbra, da esquerda para a direita podemos ver o Egito Gonçalves, eu, o Eduardo e o António Cabral, ainda sacerdote católico na altura. O Eduardo, de perfil, parece ausente, alheado, coisa que lhe acontecia com frequência.


Fomos ali reunir-nos por questões políticas e culturais – a expansão do Centro de Cultura Ibero Americana, que pretendíamos alargar editando um boletim periódico multilingue (nos idiomas da Península a que juntaríamos resumos em francês e inglês). Mas voltemos ao Guerra Carneiro e ao seu livro.

Não era em globalização, na famosa globalização de que hoje tanto se fala, que, quando em 1970, publicou o livro, por acaso numa colecção onde eu também publiquei uma colectânea de poemas, que o Eduardo pensava. Era na dimensão dialéctica do Universo na qual, de facto, tudo se relaciona e interage. Música, literatura, desporto, política, vida quotidiana, são fragmentos indissociáveis de uma mesma realidade que por comodidade e hábito de classificar, dividimos em compartimentos.

Fui passar esse fim do ano 2003 a Vilamoura (onde só consigo ir sem ser no Verão) e, no dia três de Janeiro de 2004, um sábado, estava na esplanada do Paulo China a ler o Expresso quando me saltou aos olhos o nome do Eduardo numa pequena notícia – Fora encontrado morto na madrugada do dia um num pátio subjacente ao seu terceiro andar. Presumivelmente suicidara-se, adiantava a notícia. Às primeira horas do novo ano. Quando regressei a Lisboa, logo telefonei a um amigo comum, o José Quitério. Sim, confirmou, o Eduardo suicidara-se. Poucos dias antes ao telefone tinha dito ao Quitério isso mesmo, que estava farto, que a vida não lhe interessava. O Zé pensou que fosse apenas um dia mau e que aquilo passasse. Não passou.

A última vez que estive com ele, pouco tempo antes, almoçámos juntos num restaurante perto do meu escritório. Trouxera-me alguns dos seus livros que eu não tinha ainda lido e combinámos que iria colaborar num projecto editorial da empresa. Estava bem disposto, recordámos os velhos tempos. Mas acabou por não fazer o tal trabalho - foi-me telefonando e adiando. Até àquele dia.

As coisas não lhe tinham nunca corrido bem. Interrompera os estudos universitários por lhe parecer inútil o curso que frequentava. Profissionalmente, jornalista, um bom jornalista, diga-se, tinha de fazer muita coisa de que não gostava. Na vida privada, casamentos falhados, o refúgio no alcoolismo e, sobretudo, o suicídio inexplicável da sua filha, a Catarina, destruiu a sua capacidade de resistência, provocaram-lhe o cansaço da vida que confidenciou ao Quitério. A soma de tudo isto resultou numa rápida viagem de três andares até ao cimento do pátio.

Quando estas coisas acontecem, ficamos sempre com uma sensação de culpa, com a ideia que poderíamos tê-las evitado conversando, acompanhando, ajudando. Porque, no fundo, quando estas coisas acontecem, todos temos, de facto, culpa por ajudarmos a manter um mundo em que tudo anda ligado, mas no qual não sabemos conservar entre nós pessoas como o Eduardo que, depois de desaparecerem, verificamos tanta falta nos fazerem.

3 comentários:

  1. Lembraste-me o Eduardo a preparar pastis com precisão de boticário, e a dizer poemas dele e do pai. Era de Chaves como sabes, e o pai também, o poeta Edgar Carneiro que lhe sobreviveu, e que ainda este ano, com 97 anos, lançou em Chaves (vive em Espinho mas mantém a ligação à terra) um novo livro de poemas.
    Quem ouço citar frequentemente na televisão a frase "isto anda tudo ligado" é o Vitor Bandarra, é a forma de o homenagear.
    Depois de falar com vários amigos comuns, aquando do seu suicídio, também fiquei com a sensação que morreu esquecido.
    Fazes bem em recordá-lo
    a ele
    e aos amigos esquecidos.

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  2. Quando vivi em Vila Real, encontrei-me algumas vezes com o pai do Eduardo, Edgar Carneiro, a propósito de uma antologia de poetas transmontanos e durienses que organizei. A morte do Eduardo doeu-me particularmente. Depois de muito tempo sem nos vermos, encontrámo-mos por acaso e reatámos o contacto. Vendo-o muito deprimido, tentei envolvê-lo num projecto editorial que tinha em mãos - mas ele acabou por telefonar, pouco antes do fim do ano a dizer que não estava com disposição para enfrentar aquela responsabilidade. Foi a última vez que falámos e fiquei sempre com a ideia que um pouco mais de empenhamento meu, poderia ter feito as coisas evoluir de outra forma. Se calhar é presunção. Enfim o "amarelinho" lá se foi...

    «Amarelinho» era como no grupo de Vila Real ele era chamado. Era o mais novo do grupo (17 anos?) e tinha o cabelo claro - daí o «amarelinho».

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  3. Um obrigado aos 2 Carlos pelo recordar o Eduardo. Os seus poemas foram uma dádiva. Mas que poucos conhecem pois os livros estão esgotados. Muitos só tenho em fotocópia. Que tal ir publicando alguns?
    Passámos juntos bons bocados pelo Bairro Alto, que ele dominava tão bem e chegávamos tarde ao Principe Real. Pouco depois ouviam-se os passos do Prof. Agostinho da Silva que morava por cima e se levantava com as galinhas. E foi dessa varanda que ele se atirou - ou deixou cair, quem sabe.
    O facto de o Eduardo no dia seguinte não se lembrar do que tinha feito no anterior e não reconhecer nisso um problema, fez-me afastar. Mas de uma forma em que não soube encontrar o meio termo. É daquelas coisas que me pesa no lado negativo da balança...

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