quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Israel – a recorrência da Shoah no discurso político

Carlos Loures

Circularam e circulam pela net e em e-mails fotografias de uma manifestação realizada em Londres pela comunidade muçulmana. Vêem-se manifestantes exibindo cartazes onde se diz entre outras coisas: «Matai aqueles que insultam o Islão», «Europa. Pagarás, a tua demolição está em marcha»; «O Islão dominará o mundo»; «Europa, pagarás. O teu 11 de Setembro vem a caminho»; «Prepara-te para o verdadeiro holocausto». Segundo se diz também nessas mensagens, tratava-se de uma manifestação pacífica. Habituei-me a acolher com cepticismo e cuidado estas informações que, muitas vezes mais não são do que desinformações. Lá estão as fotografias, com os cartazes escritos em inglês, mas todos sabemos como é fácil manipular fotografias. Verdade ou mentira, não há dúvida que entre os muçulmanos passa uma corrente de intolerância e ódio que nada contribui para que, quem não compartilha a sua crença, possa ao menos ser solidário com a sua legítima revolta.

Existem, mas são poucas, as vozes que nos defendam a causa palestiniana, por exemplo, com serenidade e isenção. Compreendo que seja difícil ser isento quando estamos a ser chacinados, vemos as nossas casas bombardeadas, as nossas crianças assassinadas, a nossa terra ocupada. É difícil, mas aos muçulmanos pede-se esse supremo acto de heroísmo. Do lado judaico existem , sempre existiram, essas vozes. Bem sei, que os judeus, embora em permanente perigo de extermínio à mínima distracção, estão numa situação diferente. Mas não se julgue que a posição dos israelitas é fácil. Entendo que a criação do Estado de Israel foi um erro da diplomacia britânica. No entanto, hoje a nação judaica é um facto consumado. Milhões de pessoas a povoam. A sua destruição, como propugnam os fundamentalistas islâmicos, seria um crime.

O crime que foi o dar o território dos palestinianos aos judeus, não se apaga com o crime de exterminar os israelitas. Entendo que a criação do Estado de Israel foi um erro da diplomacia britânica. No entanto, hoje a nação judaica é um facto consumado. Milhões de pessoas a povoam. A sua destruição, como propugnam os fundamentalistas islâmicos, seria um erro. Não se deve desistir da utopia de um estado em que judeus, muçulmanos, cristãos, ateus, convivam pacificamente. É uma utopia própria de quem vê o problema do exterior. Não agrada nem a judeus nem a palestinianos. Mas é a única solução digna de seres humanos.

Vem tudo isto propósito de duas das tais vozes vindas do lado hebraico, de dois livros, um que a professora israelita Idith Zertal (1944), professora de História e Filosofia Política na Universidade de Basileia, nascida antes da fundação do Estado num kibutz de Ein Shemer, ficou entusiasmada por finalmente ver traduzido em hebraico - a obra de Hannah Arendt (1906-1975) «Origens do Totalitarismo» - que li precisamente na sua edição espanhola, outro, um ensaio da própria professora Idith Zertal - «A Nação e a Morte», Falemos primeiro de Hannah Arendt.

Tendo nascido numa família hebraica de Linden (Hanôver), estudou Filosofia e Teologia em Königsberg (actual Kalinigrado) e trabalhou com Martin Heidegger na Universidade de Marburgo (uma relação que não foi apenas intelectual). Foi depois para Heidelberga, doutorando-se na respectiva universidade, em 1929, com uma tese, acompanhada por Karl Jaspers - «A experiência do amor na obra de Santo Agostinho».

Em 1933, com a chegada de Hitler ao poder, dada a sua condição de judia, foi proibida de publicar as suas obras e de ensinar. Por outro lado, o seu envolvimento com os movimentos sionistas, obrigaram-na a fugir das garras da Gestapo. Com seu marido, Heinrich Blütcher, foi presa em França. Fugindo e escondendo-se por diversos países da Europa, chegaria em 1941 aos Estados Unidos onde ensinou e escreveu.

Em 1951 publicou «Origens do Totalitarismo» que, quase seis décadas depois, surge, finalmente, traduzido em hebraico. De uma forma que à época era extremamente polémica, Arendt compara o estalinismo com o nazismo, considerando que o totalitarismo se instala explorando a «solidão organizada» das massas.

Publicaria em 1963 «Eichmann em Jerusalém» onde, contrariando as teses oficiais de que Eichmann era um monstro, Arendt demonstra que ele era um ser normalíssimo, um burocrata que foi cumprindo ordens com um grande zelo. As organizações judaicas considera-la-iam traidora, tanto mais que no seu livro aludia a cumplicidade de alguns judeus na prática dos crimes de extermínio. Arendt afinal apenas alertava para a necessidade de manter uma permanente vigilância para garantir a defesa da liberdade.

Hannah regressaria à Alemanha, onde contactaria o antigo professor Martin Heidegger, que, devido às suas concessões ao regime nazi, se encontrava afastado do ensino. Envolveu-se na reabilitação de Heidegger, o que contribuiu para que as associações judaicas a atacassem de novo. Da correspondência de Arendt com Heidegger saiu um notável livro de correspondência entre os dois – “Lettres et autres documents(1925-1975)”, Editions Gallimard, Paris.

Em tradução para o castelhano surgiu o livro de Idith Zertal com o título «La nación y la muerte. La Shoah en el discurso y la política de Israel», obra em que a autora fala de «um país de excessos e de paradoxos». Shoah é palavra hebraica para Holocausto. Não hesita em qualificar como maligna a ocupação dos territórios palestinianos, dizendo. «Governar outro povo de uma maneira tão brutal é devastador também para nós». E condena a omnipresença do Holocausto como explicação e justificação para tudo, inclusive para o facto, de usarem sobre outros uma violência brutal, assumindo apesar disso o papel de eternas vítimas.

«O vínculo entre a constituição do Estado e a Shoah e os seus milhões de mortos continua a ser indissolúvel… Desde 1948 e até à crise de 2000 não houve guerra que não tenha sido entendida, definida e conceptualizada na sociedade israelita de uma perspectiva relacionada com o genocídio», e utiliza como exemplo, por vezes obsceno, da matança sistemática perpetrada pelo regime nazi.

Usar e abusar da memória para, de forma descontextualizada, praticar actos condenáveis é a melhor forma de dar razão aos que querem ver destruído o Estado de Israel. Zertal traça no seu ensaio um minucioso percurso através das diferentes funções que o discurso político atribuiu ao intento de exterminar os judeus nos campos de concentração, começando em Israel com as intervenções de Bem Gurion no momento da fundação do Estado.

Essas funções contribuíram, por um lado, para interpretar a história dos judeus como uma sucessão de episódios que, desde os tempos mais remotos, prefiguravam a formulação da utopia sionista de finais do século XIX e a sua concretização em 1948. Mas, por outro lado, contribuíram também para aquilo que Shlomo Ben Ami define no prefácio como «a base ideológica de uma sociedade de vítimas com imunidade moral na sua confrontação com o mundo árabe e com o mundo em geral».

É aqui que Zertal conflui com Arendt, no conceito, por esta aplicado a Eichmann, da banalização do mal que leva homens normais a aceitar assassínios em massa. Por alguma coisa Israel tem um arsenal nuclear. Será para responder às pedras da Intifada?

5 comentários:

  1. É um facto consumado e não há saída nenhuma para a situação a não ser a paz! Numa guerra ganha o mais forte, não é justo mas é por isso que há guerras. Sempre houve guerras.Para travar uma guerra entre a bomba atómica Israelita e as fundas dos Palestinianos, só há um caminho.A Paz! A não ser assim volto a perguntar: Aquecem-se os crematórios ou deitam-se os Palestinianos ao mar?

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  2. Esse importante livro sobre o julgamento de Eichmann, a que Hannah Arendt assistiu e que tu referes, e em que ela defende o conceito da banalidade do mal, é um grande aviso para todos nós e um apelo à vigilância sobre as deficientes análises dos
    os acontecimentos. Análises dessas levaram, por exemplo,ao prolongamento da carnificina da Grande Guerra e, mais próximo de nós, à guerra da Bósnia.
    Em relação ao conflito israelo-árabe, sobre o qual me tenho manifestado com tanta veemência, é evidente que não defendo guerras nem a extinção do Estado de Israel. Mas é este próprio Estado que não tem facilitado coisa nenhuma, antes pelo contrário, e costuma-se dizer que quem semeia ventos colhe tempestades.
    Por outro lado, os judeus não são todos iguais. Actualmente até circulam notícias sobre a existência de movimentos de cidadãos israelitas contra a política extremista, fascista diria eu, do seu próprio governo. Aliás, durante a formação do Estado de Israel, os dirigentes sionistas e os seus seguidores não foram tão solidários como se pensa com os seus pobres irmãos que tinham escapado com vida dos campos de concentração nazis.É o próprio Amos Oz que documenta o desprezo dos sionistas por essa gente que chegava desfeita - como não? -,sem a pujança da juventude dos kibutz, na sua autobiografia "Uma História de Amor e Trevas". Conta, também, o seu desagrado pela personalidade de Ben Gurion, um homem duro e algo despótico, quando, na sua juventude teve um encontro com ele.
    Também, Tanya Reinhart, na introdução ao seu livro "Destruir a Palestina", que já aqui referi mais do que uma vez,afirma: "Durante a guerra de 1948, mais de metade da população palestiniana da época - 1 380 000 pessoas - foi expulsa da sua pátria pelo exército israelita (...) Por conseguinte, a terra israelita foi obtida à custa da limpeza étnica dos habitantes palestinianos indígenas (...) Se Israel tivesse parado por ali em 1948, é provável que eu coneguisse aceitar a situação.Como isrselita cresci acreditando (...)que esta era a forma de salvar o povo judeu do perigo de mais um holocausto.
    Mas não parou por ali".

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  3. Esse importante livro sobre o julgamento de Eichmann, a que Hannah Arendt assistiu e que tu referes, e em que ela defende o conceito da banalidade do mal, é um grande aviso para todos nós e um apelo à vigilância sobre as deficientes análises dos
    os acontecimentos. Análises dessas levaram, por exemplo,ao prolongamento da carnificina da Grande Guerra e, mais próximo de nós, à guerra da Bósnia.
    Em relação ao conflito israelo-árabe, sobre o qual me tenho manifestado com tanta veemência, é evidente que não defendo guerras nem a extinção do Estado de Israel. Mas é este próprio Estado que não tem facilitado coisa nenhuma, antes pelo contrário, e costuma-se dizer que quem semeia ventos colhe tempestades.
    Por outro lado, os judeus não são todos iguais. Actualmente até circulam notícias sobre a existência de movimentos de cidadãos israelitas contra a política extremista, fascista diria eu, do seu próprio governo. Aliás, durante a formação do Estado de Israel, os dirigentes sionistas e os seus seguidores não foram tão solidários como se pensa com os seus pobres irmãos que tinham escapado com vida dos campos de concentração nazis.É o próprio Amos Oz que documenta o desprezo dos sionistas por essa gente que chegava desfeita - como não? -,sem a pujança da juventude dos kibutz, na sua autobiografia "Uma História de Amor e Trevas". Conta, também, o seu desagrado pela personalidade de Ben Gurion, um homem duro e algo despótico, quando, na sua juventude teve um encontro com ele.
    Também, Tanya Reinhart, na introdução ao seu livro "Destruir a Palestina", que já aqui referi mais do que uma vez,afirma: "Durante a guerra de 1948, mais de metade da população palestiniana da época - 1 380 000 pessoas - foi expulsa da sua pátria pelo exército israelita (...) Por conseguinte, a terra israelita foi obtida à custa da limpeza étnica dos habitantes palestinianos indígenas (...) Se Israel tivesse parado por ali em 1948, é provável que eu coneguisse aceitar a situação.Como isrselita cresci acreditando (...)que esta era a forma de salvar o povo judeu do perigo de mais um holocausto.
    Mas não parou por ali".

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  4. Luís, desculpa, mas eu não consigo ler esse teu comentário sem me irritar. Tu achas que essa tua pergunta final é o que alguém de boa vontade quer? Já, relativamente aos radicais de Israel, és capaz de ter razão: deitar os palestinianos ao mar desconfio que não lhes desagradaria nada.

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