Carlos Loures
25 de Abril de 1974: manhã cedo, Rosália acordou-o dizendo-lhe que havia movimentos de tropas em redor de Lisboa. José refilou, rabugento. Levantou-se e espreitou pela janela. Pouca gente na rua. Tocou o telefone. Era o Carlos de Oliveira:
«Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?
Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.
Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro»: Depois «A Rosália chama-me, nervosa:
- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa.
Corro e ouço.» (…) «Na Rádio a canção do Zeca Afonso…» «Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas». Agora, sim, é tempo de cantar flores. É tempo das papoilas, bandeiras breves, voltarem ao seu destino de enfeitar cabelos. Mas José, nos seus 74 anos de vida, já sofreu muitas desilusões. Por isso, num encontro com escritores portugueses antifascistas regressados a Portugal após o 25 de Abril, José diz-lhes: «Que esta revolução das flores não seja a revolução das flores de retórica.» (foto abaixo).
Em 1975 saiu Gaveta das Nuvens – tarefas e tentames literários e o volume de crónicas Revolução Necessária. Em 1976 editou-se O Sabor das Trevas – Romance Alegoria. Em 1977 foi a vez de novo volume de crónicas: Intervenção Sonâmbula. Em 1978 saíram os volumes I, II e III de Poesia Militante. Foi eleito presidente da Associação Portuguesa de Escritores. Publicou Coleccionador de Absurdos e Cinco Caprichos Teatrais. Em 1979, nas eleições legislativas intercalares, foi candidato, por Lisboa, nas listas da APU (Aliança Povo Unido). Em 1980 começou o tempo das homenagens - o presidente Ramalho Eanes, condecorou-o como Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, recebendo depois o grau da grande oficial da Ordem da Liberdade. Nesse ano, numa altura em que o PCP já não estava «na mó de cima», portanto por idealismo e não por oportunismo como aconteceu com tantos, filiou-se no Partido Comunista Português. Publicou O Enigma da Árvore Enamorada – Divertimento em forma de Novela quase Policial. Editou-se ainda o Relatório de Sombras – ou a Memória das Palavras II. Em 1983 foi submetido a uma melindrosa operação cirúrgica, sendo também homenageado pela Sociedade Portuguesa de Autores. Em 8 de Fevereiro de 1985, morreu na sua casa da Avenida Rio de Janeiro, em Lisboa, vítima de doença prolongada.
Na obra de José Gomes Ferreira cruzaram-se três tendências ou correntes literárias, sem que se possa ligá-lo a qualquer delas: o eco da matriz saudosista que lhe ficou da iniciação com Leonardo Coimbra orientando-o para a devoção a Raul Brandão e a Teixeira de Pascoaes, a atracção pela forma insolitamente bela e onírica do surrealismo e o apelo constante do conteúdo do realismo socialista ou, como se chamou entre nós, do neo-realismo. Esta miscigénese deu lugar a uma escrita muito pessoal, muito original, muito fora das escolas e das classificações que os bem-pensantes usam como prótese, a crítica literária como bússola e a análise académica como bengala.
Falar, nestas breves linhas, de José Gomes Ferreira, foi como descrever o caminho trilhado pela inteligência através de um século manchado por numerosos estigmas – duas guerras mundiais com uma grave crise económica de permeio, o deflagrar da Guerra Fria, a ameaça da destruição nuclear, e as vésperas do colapso do «socialismo real». Em Portugal, o florescer e o ruir do sonho republicano, submerso no caos da I República e do episódio da aventura sidonista, a eclosão do corporativismo, a guerra colonial, a Revolução democrática e a desilusão que se lhe seguiu.
José Gomes Ferreira, o escritor, o cidadão, viveu tudo isto nos 85 anos que a sua vida durou – alternâncias de períodos de vibração popular, de entusiasmo e esperança, com o doloroso e cinzento marasmo de quase cinquenta anos de ditadura de permeio. Depois, antes da sua morte, ainda pôde assistir ao «regresso à normalidade», ao vazio que esta democracia formal nos deixa nas mãos e no coração.
A sua escrita incorporou-se na luta de resistência activa que os intelectuais portugueses moveram contra a ditadura salazarista. Os seus versos, as páginas dos seus livros, as letras de canções que, musicadas por Lopes-Graça, andaram nas bocas dos antifascistas, fazem parte da luminosa estrada que sulcou uma noite mesquinha e criminosa. A sua obra foi um grito de inteligência no deserto de ideias que um regime tacanho quis fazer prevalecer sobre as mentes dos Portugueses.
Por isso, concorde-se ou não com as suas opções políticas, deve-se-lhe reconhecer a coragem de quem nunca se preocupou com o que lhe era conveniente, de quem sempre fez e disse o que lhe pareceu estar certo. Falar de José Gomes Ferreira foi como narrar o caminho que as suas palavras luminosas abriram através da noite escura que durante 48 anos desceu sobre Portugal. Falei de um dos grandes, de um dos maiores poetas portugueses.
Ouçamos Luísa Basto cantar a sua (e de Lopes-Graça) «Jornada», mais conhecida por «Vozes ao Alto!»:
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
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