domingo, 19 de setembro de 2010

José Pedro Machado - I

Carlos Loures

A organização da Maratona Poética e outras actividades do Estrolabio, vieram interromper a série de textos que tenho vindo a dedicar a amigos que já partiram. Hoje vou ocupar-me de um desses amigos: José Pedro Machado, um grande filólogo que as pessoas conhecem sobretudo pelos seus dicionários – além do monumental «Grande Dicionário da Língua Portuguesa», o “Onomástico” e o “Etimológico”. Bem como uma extensa lista de obras sobre linguística. Uma vida dedicada ao trabalho, ao estudo e à divulgação do saber.


Porque sobre a vida pessoal de José Pedro Machado (1914-2005) não haverá acontecimentos muito espectaculares a referir. Pessoa tranquila, cordial, não terá vivido muitas aventuras dignas de menção, nem se lhe conhecem episódios heróicos ou de grande relevância. No seu período de maior actividade profissional, o ensino ocupava-lhe grande parte do dia. Foi um bom estudante, obtendo sempre elevadas notas, e um excelente professor que marcou positivamente a vida de muitos dos seus alunos, quer na Universidade, quer nas escolas do Ensino Secundário onde exerceu docência. Fugindo sempre a preconceitos elitistas, partilhou os seus conhecimentos de uma forma aberta e generosa, colaborando em numerosos jornais – entre outros, no Diário de Lisboa, no Diário de Notícias, em A Capital, e em diversos jornais regionais, mantendo com regularidade os seus «consultórios», colunas de resposta às questões colocadas pelos leitores, esclarecendo, ensinando sempre.

Nos derradeiros anos, dividia as suas horas pelo convívio, na Casa Chinesa da Rua do Ouro, onde bem cedo tomava o pequeno-almoço numa roda de amigos; na Livraria Portugal da Rua do Carmo, onde ia pelas manhãs, cerca das nove, pois ali tinha gabinete próprio, coordenando durante mais de 50 anos o Boletim Mensal; no Restaurante Pardieiro, no Largo da Graça, onde almoçava com frequência; nas reuniões canónicas da Academia Portuguesa da História. Sempre, até ao fim, mesmo quando já se confessava cansado e doente, dedicava muitas horas à construção da sua obra, investigando, escrevendo, revendo provas, pois trazia sempre diversos projectos em execução. Poucos terão sido os que deixou por realizar.

Em suma, um homem sereno e tranquilo, de hábitos metódicos, simples e austeros (frugal na alimentação, não fumava nem bebia álcool), moderado adepto do futebol, embora fosse benfiquista e até tenha durante algum tempo colaborado na secção cultural e no jornal do clube, sempre foi avesso a facciosismos clubistas (tal como o era a fundamentalismos político-partidários). Convivia muito, como já se disse. E nesse convívio, dava sempre mais do que recebia. Os seus amigos, entre os quais se contavam alguns antigos alunos (e a alguns dos quais, apesar da diferença de idades e do muito respeito que lhes inspirava, exigia que o tratassem por tu) aprendiam sempre alguma coisa com ele, pois possuía uma cultura muito vasta, mesmo em domínios que ultrapassavam as fronteiras da sua especialidade.

Agora, num esforço de balanço biográfico, pode dizer-se que o verdadeiramente principal na sua vida é a sua obra, o monumento de saber que construiu em defesa do idioma, herança que nos deixou e que ai está, ao nosso dispor, perpetuando-lhe a existência e permitindo que continuemos a conviver com ele. A comunidade intelectual, salvo raras excepções, como sabemos tantas vezes regida por capelinhas (ou lóbis, se assim preferirmos), nunca lhe atribuiu a importância que verdadeiramente mereceria. Não será caso inédito. Talvez a sua zanga com a Universidade, em 1940, o tenha marcado para sempre. Por outro lado, nem tinha o hábito de se pôr em bicos de pés, nem gostava de pedir favores. Sempre foi uma pessoa muito simples, mas orgulhosa. Talvez este conjunto de factores haja de algum modo contribuído para que não tenha ocupado no Olimpo da cultura portuguesa o lugar a que a sua obra faz jus. Talvez tenha sido isso... Agora que já não está fisicamente entre nós, começa a dar-se mais algum valor ao que fez. O costume.

Mas, não nos antecipemos, vamos lá tentar recapitular.


José Pedro Machado veio com dois anos de idade para Lisboa, acompanhando a transferência para a capital de seu pai, militar da Marinha. Viveu com a família na zona de Alcântara: em Santo Amaro, na Rua Bocage, actual Rua Amadeu de Sousa-Cardoso. Habitou depois na Lapa, na Rua São Francisco de Borja, fixando-se mais tarde na Graça, na Rua Leite de Vasconcelos (nome de um dos seus mestres dilectos). Frequentou os liceus Pedro Nunes, Passos Manuel e D. João de Castro, tendo como professores algumas pessoas que saberiam despertar a sua vocação e curiosidade científicas. Entre estes, destacou-se Marques Braga que, pela primeira vez, lhe falou de um grande mestre: um tal José Leite de Vasconcelos. José Pedro nunca iria esquecer este professor liceal e, reconhecidamente, ao longo da vida far-lhe-ia referências de estima e de gratidão.


Porém, ouçamos o próprio José Pedro falar sobre o seu percurso escolar: «Por volta de 1920 as crianças só podiam frequentar a Instrução Primária a partir dos sete anos de idade. Meus pais, evidentemente, não procuraram qualquer excepção para mim. Daí matricularem-me em Novembro de 1921 pois nasci em Novembro de 1914: Residia em Santo Amaro, aqui em Lisboa, onde havia algumas escolas daquele nível: a Promotora (no Largo do Calvário), a Voz do Operário (num rés-do-chão de prédio na esquina das ruas Filinto Elísio e Gil Vicente) e a «da Câmara», esta na Calçada da Tapada quase defronte da Rua Leão de Oliveira, sua perpendicular» (...) «Fui discípulo, na primeira classe, da D. Mercedes, pessoa direita no físico como no trato.» (...) na segunda classe, a D. Maria do Carmo falava mais e com alguns gritos mantinha o respeito mas ensinava com facilidade; a D. Paquita regeu o meu curso nas terceiras e quarta classes» (...) impunha-se pela severidade, auxiliada pelos seus ares masculinos e o fácil discurso (calma ou zangada) e pela eficiência da reguada, mas ensinava bem, pacientemente. Várias vezes deu provas de generosidade, compreensão e coragem.»1 Vejamos agora o que ele nos conta sobre o curso liceal: «Frequentara o Pedro Nunes, onde iniciei aquele curso em 1926-1927. Ali conseguira obter aprovação nos 1.º, 2.º e 3.º anos. Quando tentava inscrever-me no seguinte comunicaram-me que não me admitiam, o mesmo acontecendo com numeroso grupo de companheiros: saíra a lei das residências. Segundo ela, cada liceu abrangia determinada área de Lisboa e competia-lhe só aceitar a matrícula de quem morasse na que lhe era legalmente atribuída» (…) Eu então vivia em Santo Amaro pelo que, disseram-me, tinha de ir para o D. João de Castro, criado uns dois anos antes ali para o Rego. Protestámos, mas logo nos tranquilizaram: houvera mudança desse liceu para o bairro de Belém.» Assim, «No ano lectivo de 1929-1930 eu frequentava o Liceu de D. João de Castro, no arruinado edifício da Quinta da Praia, onde hoje está o até há pouco tão (mal) falado Centro Cultural de Belém. Aproveitava os intervalos das aulas para percorrer o areal que havia pouco ali se fizera roubando terrenos ao Tejo, hoje ocupados pelo espaço entre a linha do comboio para Cascais e a muralha.» (...) dei-me bem na nova casa de estudo» (...) Lá obtive os 4.º e 5.º anos, mas não havia o então chamado curso complementar, isto é, os 6.º e 7.º anos. Para estes, procurei voltar ao Pedro Nunes, mas a tal lei também me fechou essa mudança. Teria de optar pelo Passos Manuel.» E assim foi, José Pedro completou o curso liceal no velho edifício do Convento de Jesus.

(Continua)

1 comentário:

  1. Carlos Leça da Veiga, inpossibilitado de colocar o comentário, pede-me que o ponha por ele. Diz-te que o Liceu de Passos Manuel nunca viveu no antigo Convento de Jesus. Foi o primeiro Liceu nacional a ser construido de raíz. Acrescentava que não admitia qualquer desmerecimento do meu inesqucível Liceu. Respondo já que colhi a informação no livro «Factos, pessoas e livros», de JPM. Vou tentar saber se a informação se confirma.

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