quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Manuel de Castro

Carlos Loures

Como sendo um eco da “Maratona Poética” que às 24 horas de ontem terminou e que tanto interesse suscitou, provocando um acentuado acréscimo no número de visitas e no de leituras, balanço de que daremos conta proximamente, vou continuar por estes dias a falar de poetas que conheci e que já não estão entre nós. Hoje será a vez do Manuel de Castro.

Conheci o Manuel de Castro no café Gelo, em 1958. Tinha um feitio difícil, passando facilmente de uma extrema afabilidade para uma agressividade também excessiva (ou vice-versa). Se fosse hoje, dir-se-ia que sofria de bipolaridade. Na época atribuíam-se estas coisas a razões mais prosaicas – ao excesso de álcool, por exemplo. Porque Manuel de Castro foi um grande poeta, era uma excelente pessoa, mas abstémio não era. À medida que o íamos conhecendo, ia dissolvendo-se a sua carapaça de formalismo ou de grande animosidade, e aparecia o verdadeiro Manuel – cordial, bem humorado, irónico, com grande capacidade de encaixe para aceitar críticas. Ria-se em prolongadas casquinadas que lhe faziam estremecer os ombros.

Eu não valorizaria nem a eventual bipolaridade, nem o real alcoolismo – diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada, mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi dado o merecido valor.

Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada envenenada que ele disse sobre a «Pirâmide» e que eu levei a mal. Felizmente que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos nos azulejos da parede. Talvez mais sóbrio, esquivei-me a tempo e o Manuel andou com a mão ligada nos dias seguintes. Se me tem acertado, partia-me ao meio. Foi na festa de despedida do Café Royal, salvo erro, no fim de 1960 ou no princípio de 1961. Passou a ser um banco.

Com um outro amigo que apenas me lembro chamar-se Toninho, fomos uma vez acampar para o Zambujal, perto de Bucelas. Foi uma épica semana de copos e aventuras várias. Houve também, no Verão de 61, um agradável almoço em minha casa, perto de Carcavelos, com o Renato Ribeiro e a Fernanda, o Benjamim Marques e a companheira, de cujo nome não me lembro, do Manuel e a Natália, sua mulher, eu e a Helena, que tínhamos acabado de casar.

Depois saí de Lisboa. Poucas cartas escrevemos, pois não éramos de grandes epistolografias. Quando vinha a Lisboa, víamo-nos e pude ir apercebendo-me de que a doença iria levar a melhor (o Luiz Pacheco afirmava que foi uma espécie de suicídio, continuando a beber depois de saber que isso lhe seria fatal). Com 37 anos, morreu. Um amigo e um grande poeta que desapareceu.

Mas não da minha memória.

Manuel de Castro, nasceu em 17 de Novembro de 1934 em Lisboa e faleceu, também em Lisboa em 12 de Setembro de 1971. Viveu os primeiros anos em Goa, onde o seu pai era encarregado do Governo e depois na antiga Lourenço Marques. Regressado a Lisboa e tendo perdido a mãe aos 6 anos, o pai enviou-o aos 8 anos para o Seminário dos Padres da Consolata. Sem vocação sacerdotal, fugiu do seminário. Autodidacta, interessou-se por diversos ramos do conhecimento – a literatura, a poesia, a filosofia, as línguas. Sabia sete idiomas para além do português., incluindo o alemão e o dialecto de Heidenheim, cidade em que viveu cerca de 4 anos e em que foi interprete da polícia e dos tribunais, face a quantidade de emigrantes ali existentes das mais diversas nacionalidades.

Em 1958 saiu o seu primeiro livro de poesia – «A Zona». Mais tarde publicou «Paralelo W» com capa de João Vieira, e «Estrela Rutilante». Colaborou na revista Pirâmide, com Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Edmundo Bettencourt e outros grandes nomes da cultura portuguesa e internacional, nos Cadernos do Meio Dia, na Poesia 71, na Colóquio, na Árvore, na & ETC, na Contraponto…Foi incluído na Antologia do Surrealismo e o Abjeccionismo. Foi também integrado nas duas antologias da Novíssima Poesia Portuguesa da responsabilidade dos escritores Mello e Castro e Maria Alberta Menéres e ainda na do Humor Português que abrange escritores dos séculos XVIII a fins do século XX. Numa bienal de Paris entre 1963-66 foi considerado, com Carlos Drummond de Andrade, um dos melhores poetas da língua portuguesa. Do número 2 da Pirâmide, seleccionei um poema. Ei-lo:

Poema

A noite está líquida oclusa vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se de memória
e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido
a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos na inconsciência dos prédios
sobre a cidade a cidade a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora
viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:
o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos baleado
assassinado corrupto perdido
o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso
o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia
a noite é um coral magnífico na noite

Sem comentários:

Enviar um comentário