Clara Castilho
O belo texto com que o Adão Cruz nos presenteou em que falava de partos na Guiné e as achegas sobre o futuro de um bebés nascidos( apetece dizer: o mundo é pequeno!) fez-me lembrar este texto de minha mãe (publicado na revista”Mulher”, ano LXV, nº 3358, de 8.9.76)
Um texto de MARIA CECÍLIA CORREIA
QUANDO A ANA NASCEU
A primeira vez que nos reunimos – as quatro mulheres da família – foi quando a Ana nasceu.
Foi simples. Pensei: deve ser uma festa. E convidei as outras filhas.
A mais velha tinha 18 anos e, não sei porquê, uma leve suspeita que o parto podia ser coisa bicuda. A outra tinha 10 e a sua presença foi escândalo para algumas pessoas, de certa idade, entenda-se. Tão novinha – diziam, que disparate!
Vejamos: se a filha do meu compadre Lourenço, com 12 anos, foi a parteira da mãe, lá por terras da Beira Alta, porque considerar a Clara nova de mais? Ela até ficou a julgar-se mais crescida!
Além de nós a três , Cersina Bermudes, que perdeu o título de Drª porque os títulos se perdem quando outros valores mais altos aparecem. Assim, era como uma amiga que ela discretamente dirigia a nossa reunião-festa. Lembro-me que contava uma recente viagem à Áustria.
No pouco tempo de espera, a nossa atitude era a mesma que teríamos numa estação de caminhos-de-ferro: entretínhamos o tempo como quando se espera qualquer coisa. E a “qualquer coisa” apareceu pouco depois, com ar calmo e grande cabeleira preta. – Pareces uma indiazinha do Peru, foi como a saudei. E fiquei contente por ela ser uma rapariga. Mulher – futura mãe! Assim éramos nós quatro, ali reunidas, a fonte de outras crianças; a maternidade presente e as que viriam depois teriam sempre a ligá-las aquela tarde de esta.
Ana, a última, e alheia ainda a significados, não poderia saber que essa reunião tinha sido preparada muitos anos atrás, quando outros lutaram para que ela pudesse ser feita. Ali estavam os estudos e os esforços de quantos quiseram mais bela a maternidade, fora e dentro de Portugal.* De quantos lutaram profundamente e cm coragem, primeiro contra o desconhecido, depois contra a ignorância e os preconceitos. Quase todos, com pena minha, ignoram o agradecimento de quem recebia os benefícios das suas conquistas.
Ana não sabia também que, juntando pedra na construção, eu queria fazer a preparação remota do parto sem dor a essas filhas, que seriam mães, por sua vez, e a quem teria de ser dado o “contraveneno” das conversinhas-rumores” sobre o parto. O parto foi posto aos seus olhos, não como uma dura prova, mas como um acontecimento simples e belo.
A “indiazinha” ficou no berço e as irmãs regressaram a casa. Talvez amanhã seja coisa corrente os irmãos esperarem outros irmãos com o mesmo ar de festa com que a Ana foi recebida, não sei. Mas para nós foi extraordinário. Todas hoje sentimos que essa foi uma tarde grande: aconteceu que chegou a Ana e que todas as mulheres da família a estávamos esperando.
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
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Belo relato Clara. Antes de tirar a especialidade de cardiologia, portanto no início da minha carreira, fiz dezenas de partos na serra da Gralheira, à luz da candeia e do ptróleo e também na Guiné.Sempre achei que é um momento da vida cheio de beleza e poesia.
ResponderEliminarÉ um texto encantador. Ainda me lembro da noite em que a minha irmã mais nova nasceu, em casa. Eu tinha três anos e era uma miúda muito irrequita. Não tinha dormido nada porque sabia que ia chegar um bébé. Fui espreitar e achei muito estranha a posição da minha mãe. Mas logo ali levei um ralhete e me mandaram embora. A minha sensação de injustiça só se acalmou quando me puseram o bébé no colo por um bocadinho. Parecia-se com o meu boneco e eu senti-me muito importante naquele momento.
ResponderEliminarClara, o mundo é pequeno, e para nós que andamos pelos mesmos sítios desde miúdos ainda parece mais. Uns meses depois da tua mãe ter escrito este belo texto, nascia o Filipe, o meu filho mais velho. Na Clínica Cabral Sacadura, a obstetra foi a Doutora Cesina Bermudes. As peripécias davam um conto, pois a Doutora tinha ida buscar uns primos ao aeroporto, contava os minutos por causa dos sinais de parto, mas lá chegou a horas, ofegante. O que a tua mãe conta sobre o "parto sem dor" foi muito importante para nós há 33 anos. A carmo apesar de ter saúde, ainda lembrava o que um incompetente dum médico lhe tinha dito na adolescência, se abortasse teria 90% de possibilidades de morrer, se tivesse algum filho morria de certeza. Eu tinha aquela imagem desgraçada dos filmes, com toda a gente a correr aos berros.
ResponderEliminarO parto a que assisti (e ajudei) foi das coisas mais belas e tranquilas das nossas vidas. Quando o Filipe surgiu, a Carmo que seguia por um espelho disse;- olha tem o cabelo preto! daí a pouco dormiam os dois.
A Professora Doutora Cesina Bermudes, introdutora do "parto sem dor" ou psicoprofiláctico, foi uma mulher notável, a Democracia não a homenageou como merecia, pelo pioneirismo na medicina e no ensino, e pela sua actividade cívica.
O que faço há 33 anos é vender o "parto sem dor" a todas as mulheres, contando o nosso caso, sei que nem sempre é fácil como foi esse (e o seguinte) mas falo da nossa experiência.
Eu sou um valente do caraças, fui para a sala de partos, o Hugo estava a nascer, e a médica voltou-se para mim e perguntou: trato do filho ou do pai? saí da sala e ainda tive tempo de tirar a bata antes de desmaiar...
ResponderEliminarNão fiques triste, Luís porque eu conheço muitas histórias dessas. Até conheço um que foi chamar o ex-marido da mulher porque ele não aguentou.
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