sábado, 4 de setembro de 2010

Novas Viagens na Minha Terra


Manuela Degerine

Capítulo XCIX

Vigésima terceira etapa: em Pontevedra (continuação IV)
Esta senhora reage a comportamentos que não compreende e por isso lhe parecem antagónicos com os deveres e posturas do peregrino.

A peregrinação sempre foi, mesmo na Idade Média, algo de mais complexo: um caminho no sentido próprio e metafórico. Aqui e agora, na União Europeia, no século XXI, convém não esperar mais do que isto dos caminhantes – será pouco?

Não me parece. Numa sociedade em que tantas experiências são mediatizadas ou mesmo virtuais, o simples facto de atravessar a vida da maneira directa, concreta e demorada, ver, ouvir, provar, cheirar, sentir – representa, só por si, uma conquista. Descobrimos que o ecrã da televisão não é o centro do mundo: para além das imagens pasteurizadas, existem realidades múltiplas, mais complexas e estimulantes. E uma caminhada de tantos quilómetros também nos projecta, de diversos pontos de vista, para as fronteiras desconhecidas do nosso ser.

Se a Igreja compreendesse a sociedade, prestaria mais atenção a tais transumâncias. Não compreende e, para mim, ainda bem. Prefiro que sejam as estruturas autárquicas e não as religiosas a albergar-me: sinto-me mais livre.

A maior diferença entre o peregrino do século XII e o do século XXI não está na mochila mas nesta independência; o da Idade Média era, do princípio ao fim, directa ou indirectamente, controlado pela Igreja, que lhe concedia uma enxerga, uma refeição, cuidados de higiene, tratamento das feridas, ocasiões para, ao mesmo tempo, suscitar dons, confissões, comunhões e atitudes codificadas, no resto do tempo bastava o controlo que os peregrinos exerciam uns sobre os outros, muitos acentuando os sinais exteriores de fé e, deste modo, contribuindo para um ambiente que, hora após hora, dia após dia, semana após semana produzia efeito até nos mais incréus.

O caminho passa por capelas, igrejas, calvários, conventos, onde os caminhantes se encontravam, rezavam, descansavam, passavam a noite... Agora a maioria das igrejas permanece fechada, para prevenir o vandalismo e, se deparamos com alguma aberta, a maioria de nós entra, considera o espaço de um ponto de vista estético – e prossegue o caminho. A religião católica perdeu influência por não saber acompanhar as mudanças da sociedade e, do celibato dos padres à recusa da contracepção, não ter ainda entrado no século XX; no entanto, embora os crentes, de maneira notória ou não, se afastassem da Igreja, a busca de transcendência faz parte do ser humano e acaba, de alguma forma, por se manifestar.

Hoje quase nada distingue o turista do peregrino. Entre os católicos praticantes e os desportistas da caminhada – duas categorias que, embora alguns as consigam conciliar, podemos situar nos extremos – encontra-se a maior parte dos andarilhos, incapazes, quase todos, de estabelecer, com rigor, a sua individual motivação.

Eu diria... Trago cinquenta por cento de viajante e cinquenta por cento de peregrina: procuro dentro e fora de mim. O meu caminho é também um percurso interior.

Qual a relação com Santiago?... Perguntarão numerosos leitores. Percursos pedestres há muitos, não em Portugal, certo, mas através de toda a Europa. E santos há tantos... Para ir além dos primeiros trinta quilómetros, importa dispor de albergues acessíveis, de trajectos sinalizados, adaptados à caminhada; porém isto existe noutros itinerários. Em França há-os em todas as regiões – e, só à volta de Paris, com a possibilidade de regressar à noite a casa, de metro ou comboio, há centenas de quilómetros para percorrer. O que diferencia este caminho está em parte nos peregrinos que, ao longo dos séculos, o percorreram: aqui assento as botas nas marcas que os pés deles deixaram e, ainda ontem, sentada à beira da via romana, quase os via e ouvia, há nove séculos, no tempo de D. Afonso Henriques.

A poucas jornadas de Santiago de Compostela, o grupo dos caminhantes era numeroso, alguns tratavam das feridas aplicando ervas, contudo a maioria habituara os pés ao caminho, saboreava, como nós, não uma banana, claro, mas algumas cerejas, se fosse tempo delas, avelãs, passas ou castanhas, a maior parte comia um pedaço de pão – nem sempre delicioso: o que tivesse encontrado. Rezavam, sem dúvida. Cantavam cânticos religiosos ou aventuras da reconquista; uma ou outra vez, um trovador entoaria, antes de chegar a um castelo, algo novo e escandaloso, cantigas à moda da Provença – para avaliar as reacções. Senão havia muitas histórias para ouvir, prodígios, encantos, proezas da guerra, lendas de santos. Corriam avisos e boatos. Cada um contava, ao longo da viagem, o seu burgo ou aldeia, a família, os senhores, os conventos, as guerras, os rebanhos, as colheitas, as fomes, a epidemias, as romarias, os invernos e as primaveras... Alguns cristãos, vindos de Lixbûna, causavam ainda estranheza. Notavam-se companheirismos, simpatias ou desconfianças, grupos que se protegiam e auxiliavam...

Embora os peregrinos do presente sejam, como já referi, espécimes de composição heteróclita, esta complexidade torna-os mais interessantes do que os simples andarilhos pelos trilhos de França ou da Bélgica. E, podendo nestes e noutros países percorrer milhares de quilómetros, caminhar durante um mês ou dois, se nos apetecer, encontraremos sem dúvida muita gente, todavia cada caminhante ou grupo fará um pedaço distinto do percurso enquanto no Caminho de Santiago convergimos todos para o mesmo ponto. Isto não só instaura uma coreografia de encontros, ultrapassagens e reencontros, cada dia, nos albergues, tecendo uma história colectiva, mas também constitui um fazer comum: mesmo caminhando separados, avançamos todavia juntos.

Um santo não se define apenas pela biografia mítica ou histórica, é sobretudo a figura que, ao longo dos séculos, os crentes foram esculpindo. Por conseguinte, ao contrário das santas que expõem os olhos ou os seios numa bandeja, este Santiago peregrino que, como eu, busca um caminho com os pés na poeira ou na lama, que transpira, que treme de frio, que sofre com bolhas, que se alimenta de pão e água, cuja roupa ganhou, neste clima húmido, odores pouco habituais – é uma imagem ascética com a qual me posso identificar. Qual o caminho de Santiago? Qual o meu?

São perguntas às quais verdadeiramente não sei responder.

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