quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O meu bocado

Marcos Cruz

Muitas vezes tive a tentação de me juntar a alguém com sucesso, alguém que me pudesse atrelar, por piedade ou, de preferência, por me reconhecer valor, e levar-me aonde eu sozinho nunca conseguiria chegar. Mas algo, nessas alturas, me dizia que, uma vez cometido esse acto de compaixão, eu ficaria com uma dívida de gratidão para com a pessoa em causa e moralmente obrigado a não a deixar ficar mal, o que transportaria o padrão de sucesso da operação para ela e não para mim, ou seja, todo o meu percurso a partir daí se mediria pelos passos do meu salvador e não pelos meus. Eu deixaria de ir a reboque da minha exigência e passaria a ir a reboque da dele, ou até, na pior das hipóteses, a reboque da minha exigência projectada nele, que seria igual à minha exigência multiplicada pelas vezes que o achava a ele melhor do que eu. Sim, porque só se justificava aceitar a sua oportunidade se o achasse melhor do que eu. A minha exigência nunca me deixaria pensar: ok, o projecto é dele, por isso já não preciso de me cobrar tanto. Pelo contrário: nesse caso, haveria uma factura dois-em-um para um eventual sucesso um-em-dois. Nada disto significa individualismo, não se confunda o que digo. Significa, sim, consciência da dimensão do indivíduo, nos seus deveres para consigo e para com os outros. Antes de mais, a nossa luta (talvez fosse melhor dizer a minha, por razões de coerência) deve ser para connosco, no sentido de nos tornarmos um projecto de sucesso para consumo interno, de nos construirmos passo nosso a passo nosso, sabendo que podemos infligir os golpes que quisermos no silêncio que ele, como um desenho animado, se reconstitui sempre, volta sempre à forma inicial e última, enquanto nós crescemos, mudamos e nos moldamos golpe a golpe. Já não sei quem o escreveu (aliás, veio esta semana citado num jornal desportivo), mas "saber mais é ser mais", e (como diria La Palisse, que também poderia ter escrito a frase anterior) só se é se se for, devendo este "for" ser lido na sua dupla acepção, ontológica (ser) e accional (ir). Ir sendo ou ser indo, portanto. Sem rebocar e sem ser rebocado. A experiência, a minha, claro, faz-me dar um toque pessoal a uma célebre lição moral de uma das fábulas de La Fontaine: "Guardado está o rebocado para quem o há-de comer". Não vão por mim.

(ilustração de Adão Cruz)

6 comentários:

  1. Por que será que me identifico sempre tanto com o que tu dizes, Marcos? E com o encantamento desse quadro?

    ResponderEliminar
  2. É muito melhor viver sem cabresto! Seja ele qual for...Paga-se a factura mas não temos que dar contas a ninguém. Mas desde que não seja uma atitude autista e se saiba procurar as raízes, as ramificações naquilo e naqueles com quem temos algo em comum...

    ResponderEliminar
  3. Quanto me tem custado viver sem cabrestos! Mas feliz e livre.

    ResponderEliminar
  4. Acho que a publicação deste texto pelo meu pai é oportuna, assim como a conjugação com o quadro, que me provoca uma emoção para lá do estético. Sinto ali uma vertigem qualquer, um arrepio, que não tem só a ver com a frieza abrupta das construções ou dos edifícios e, aliás, se reforça no contraponto com a candura que envolve as duas figuras. Há uma aura de ilusão em redor da pintura, assumida em termos mais concretos na não correspondência entre as partes acima e abaixo daquela linha central, que parece (lá está) delimitar um espelho, sensorialmente captado por mim como sendo de água. Entrevejo ali, falando de modo genérico, o rural e o urbano, não necessariamente associados de forma respectiva ao puro e ao podre, ao sagrado e ao profano - nada de maniqueísta me surge no quadro, a força dele não é dessa luta, é justamente a da revelação das duas faces da moeda, de a luz ser parte da sombra e, nesse sentido, de nada ser nada, exactamente pela impossibilidade do tal contraponto fora do espectro da ilusão. A vertigem ali é toda essa: o espanto da figura mais alta e aparentemente mais velha e a absorção na paisagem (digamos assim) da que a acompanha, dois estados de espírito distintos que se unem e complementam (e poder-se-ia até especular sobre se a mancha no cimo da cabeça da primeira, arrisco-me a dizer, mulher não remeterá mesmo para um novo espírito, um feto na sua mente, uma semente, o que, a ser verdade, apontará mais à ideia de mudança inevitável, de devir universal independente do sentido que nele vejamos, do que ao aspecto procriativo e, menos ainda, especificamente geracional). O que me arrepia no quadro é muito o fundo falso, o medo e o desejo reflectindo-se um no outro, a paisagem que se assemelha a uma boca com os dentes de cima bem afiados e prontos a atacar e o lábio inferior sereno e aguado como que a encorajar a acção, o salto no desconhecido, prometendo sarar as feridas de qualquer guerra que se aproxime. É um quadro de esperança vazia, o que não equivale a dizer que é um quadro vazio de esperança. É apocalíptico e seminal. São essas, afinal, as duas faces de todas as crises - e as duas faces de tudo. Ainda bem que nos inspiramos uns aos outros. Que seja assim até nos expirarmos.

    ResponderEliminar
  5. The belt uѕes gel pаԁs postionеd more thаn the center abdomіnаls
    anԁ the outԁoοrs obliques.

    My homepage www.elcomohacer.com

    ResponderEliminar
  6. Making use of EMS by itself is not a substitution for excess weight-lifting.
    Electrical muscle stimulation is utilized to make the muscle mass contract.


    Also visit my homepage: chinesetattootranslation.net

    ResponderEliminar